Daniel arqueou a sobrancelha loira, colocando a caneta na boca. O café a sua frente já estava quase frio, mas ele não conseguia parar de olhar para o caderno a sua frente.
Era dia do seu plantão, o que significava que era um dos seus dias preferidos. Por uma incrível sorte, desde que ele começou seu turno, não houve chamados. Era um dia bastante calmo, apesar de ser véspera de fim de semana. Ainda não acontecera nenhum acidente, o que provavelmente era o mais próximo de um milagre. Mas, mesmo que tivesse acontecido um dilúvio, ele não seria capaz de perceber, tamanha sua concentração nas palavras cruzadas.
— Sua sobrancelha vai cair da testa, viu – Maíra disse, dando um tapa na cabeça dele.
A caneta dele caiu da boca e Daniel soltou um resmungo.
— Puta merda, Mai, eu já estava quase lembrando!
— Você já estava quase lembrando há quinze minutos. Já foi melhor nisso, hein?
Ele sacudiu os ombros, colocando o caderno de cruzadas sobre a mesa da sala da equipe médica. Então pegou o copo de café e levou a boca.
— Cacete. Isso tá frio.
— Não me diga – Maíra revirou os olhos.
— Não posso ter demorado tanto tempo assim, não é?
— Não liga pra isso. É a idade – ela lhe deu um sorriso condescendente.
— Tira esse sorriso da cara, palhaça – revirou os olhos – Ao invés disso, me ajude a lembrar – pegou o caderno de novo – País de pequenas dimensões no sudeste asiático. Nove letras.
— Foi mal – ela voltou a ler o jornal – Geografia nunca foi meu forte.
— Você é mesmo imprestável, não é, infectologista.
— Diga isso quando tiver uma infecção grave e precisar da minha ajuda.
Daniel revirou os olhos e voltou a encarar a sua cruzada quase toda completa, só faltando mesmo aquela maldita palavra que ele sabia que estava em algum lugar de sua mente. Soltou um suspiro e resolveu tirar um pouco da atenção da palavra-cruzada, pra ver se a memória voltava.
— Que é que tem de tão interessante aí, no jornaleco? – perguntou.
— Você quer saber as últimas notícias da sua família?
— Deus me livre, não!
Maíra riu, balançando a cabeça.
— Saiu outra matéria de Dafne, dizendo que ela foi novamente a melhor jogadora da última partida do campeonato regional.
— Daf é maravilhosa mesmo – ele assentiu – A única que presta da família. Pena que ela é obrigada a passar por isso, porque é mesmo boa jogando vôlei.
— Nunca vou entender o seu ódio pela sua própria família. Eles não podem ser tão difíceis assim.
— Rá – Daniel imitou uma risada, sem nenhum humor – Rá, rá.
Os dois ficaram em silêncio de novo. Daniel mexia a boca, sem som, falando todos os países da Ásia que lhe vinha a mente e balançando a cabeça em negação para cada nome.
— Brunei. Camboja. Filipinas – ele disse, contando nos dedos – Laos. Malásia. Mianmar. Tailândia. Timor-Leste. – balançou a cabeça – Vietnã. Falta um. Maldição – praguejou.
— Maldição – alguém abriu a porta num estrondo.
— Isso aqui ainda é um hospital, doçura – Daniel disse, girando o pescoço para ver Isadora.
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Feridas Profundas (HIATO)
General FictionESTE LIVRO PODE CONTER GATILHOS RELACIONADOS A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. Há algo de podre no reino da Dinamarca, escreveu Shakespeare no ato I de Hamlet. Já se passaram vários atos na vida de Isadora e, mesmo assim, tudo continuava apodrecendo ao seu r...