Não estava sendo uma manhã gloriosa para Daniel.
Ele não gostava de reclamar sobre a vida, de um modo geral. Até porque Daniel não era idiota e não gostava de pagar de injustiçado quando claramente ele não era. Ele era rico. Ele era branco. Ele era hétero. Logo, ele não achava que tinha muitos direitos de reclamar sobre a vida. Afinal de contas, com a vista que ele tinha da sua casa não era como se lhe sobrasse muitas opções para reclamar.
Quanto ao amor... que se dane. Não dava para ter sorte em tudo. Pelo menos era isso que ele dizia quando lembrava que, grande porcaria poder limpar a bunda com dinheiro – porque basicamente era isso que ele podia fazer, se fosse mais escroto – com a família estúpida que ele tinha.
Certo. Sem sorte com família, sem sorte no amor. Mas ainda assim cagando dinheiro.
Ele seria um hipócrita se reclamasse.
De todo modo, o dia estava uma droga antes mesmo que ele levantasse da cama. Antes que ele vestisse suas roupas brancas para ir para seu trabalho. Antes, até, dele tomar café.
A voz do seu pai lhe dizendo que ele precisava fazer algo que fosse mais útil que só consertar ossos, na briga da noite anterior, ainda ressoava em sua cabeça. Daniel sentiu um quê de ânsia de vômito, não sabendo muito bem se era motivado aos drinks a mais que bebera antes de dormir ou apenas a nojeira que ele sentia de tudo aquilo.
Era engraçado porque se Daniel estivesse só operando cérebros ou corações estaria tudo perfeito. Ossos não. Ossos não era glamoroso o suficiente para a família Vale.
Ele se levantou, sentindo as costas doerem, e foi tomar banho. Embora seu pai achasse sua profissão uma perda de tempo, era a única coisa que ele ainda tinha.
Quando a família, o amor, e todo o resto lhes dão as costas é apenas a sua profissão que você pode agarrar.
Daniel saiu do seu apartamento sentindo-se um lixo, ainda que de banho tomado. Parecia ser sempre impossível agradar o doutor Hélio, como se já não fosse impossível agradar todo mundo da família Vale. Ele ainda ficava assustado com o fato de que a maioria deles só estavam tentando serem uns melhores do que os outros ao invés de apenas serem uma família.
Ser uma família não devia ser assim tão difícil como seus pais faziam parecer ser.
Daniel tinha consciência de que ele nunca ganharia nenhum prêmio por ser traumatologista. Mas não era com o prêmio que ele se preocupava. Era com o fato de que nem seu pai, que era médico, era capaz de reconhecer a utilidade da sua profissão.
E daí que ele não curava corações?
Cardiologista nenhum poderia curar um coração partido de amor.
Pior, cardiologista nenhum seria capaz de curar o coração podre e frio de seu pai.
Ele caminhou a passos largos pelas ruas estreitas e mal planejadas de Ponte Belo. Não era sete horas e ele precisava estar no hospital, do outro lado da cidade, em meia hora. Mas Daniel decidiu que precisava de um café decente, além dos apenas caseiros que fazia, e, ainda que soubesse que possivelmente se atrasaria, ele foi andando até seu lugar preferido.
Seria um dia quente, com certeza. Ele podia sentir isso por trás da neblina que o abraçava e tornava a rua um pouco cinza e mais bonita.
— Dan! – alguém o chamou, do outro lado da calçada – Daniel! Ah, meu Deus, quanto tempo!
Os pés de Daniel se congelaram no lugar, uma reação idiota de alguém que só queria correr e fingir que não tinha ouvido nada. Mas o médico havia ouvido. O médico havia se paralisado. O médico não podia fazer mais nada além de esperar a dona da voz se aproximar.
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Feridas Profundas (HIATO)
General FictionESTE LIVRO PODE CONTER GATILHOS RELACIONADOS A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. Há algo de podre no reino da Dinamarca, escreveu Shakespeare no ato I de Hamlet. Já se passaram vários atos na vida de Isadora e, mesmo assim, tudo continuava apodrecendo ao seu r...