Eu via os ponteiros correrem devagar e o céu custar a escurecer, cada segundo parecia uma eternidade para quem estava com um tipo de doença impregnada nas veias. Minha xícara de café vasta parecia aumentar mais a cada golada, mas aquela bebida era a única capaz de esquentar meu corpo naquele atípico dia de frio, a ponto de comprimir as vidraças. Todos os barulhos ao meu redor pareciam um estrondo, por mais que aquela casa estivesse mergulhada em silêncio.
Estava sentada na sala e a sensação que tinha era de que a cada segundo estava me afundando mais e mais naquele sofá de camurça escura. Matheus me encarava com medo, e eu não o culpava por isso, afinal, eu também estava apavorada comigo mesma. Ele desligou o televisor e o agradeci sem abrir a boca.
Levantei e subi as escadas, andando o mais rápido o possível para chegar ao banheiro, porque tomar um banho era a melhor solução que eu tinha para esvaziar o mínimo possível dessa tensão. Minhas olheiras escuras estavam ainda mais enaltecidas naquele reflexo no espelho, estava acabada, nenhuma gota de energia restava em mim, além da própria que me mantinha viva. Liguei o chuveiro e deixei com que a água levasse todas as impurezas e preocupações - por mais que fosse quase impossível.
Eu estava como uma espécie de espelho, sempre com situações diferentes, mas sempre refletindo a mesma coisa, sempre passando a mesma dor e cansaço.
Pus a roupa rápido porque ouvi barulhos na porta e vozes novas. Desci as escadas para encontrar com quem aguardava com aflição desde que havia aberto os olhos naquela manhã. A trupe de sempre: Isaac - misterioso e cético - e Linda - gentil e crente. Mas havia uma que eu não conhecia: cabelos vermelhos como uma labareda, alta, braços e mãos finas e delicadas.
— Quem é a ruiva? — Matheus, sempre hospitaleiro, ergueu a sobrancelha ao questionar,
— Me chamo Paona. — a mesma respondeu, com os olhos flamejantes. — Vim cuidar da sua amiga elétrica. — e ela sinalizou para mim com a cabeça.
— Paona é uma feiticeira, ela nos ajudará com a Gabriela. — e os cabelos de Berlinda estavam levemente encaracolados e se balançaram quando mexeu a cabeça.
— Isso é preciso? — estava assustada, havia realmente entendido o quanto aquilo era sério.
— Se você fosse um pouquinho mais experta, saberia.
Revirei os olhos para Isaac.
***
Paona pediu para ver as marcas no corpo da minha "primeira vítima". Isaac tirou a camisa e eu travei. Suas costas estavam vermelhas, tanto quanto poderiam estar. Parecia que havia levado uma dúzia de chicotadas, os machucados estavam em carne viva. Alguns cortes pareciam finas veias púrpuras, cravadas por de baixo da pele. A feiticeira se estarreceu, e ergueu a mão - que tinha algum tipo de marca- e esperou que algo acontecesse, mas nenhuma folha caiu, e se estarreceu mais ainda.
— Era pra se curar. Então é mais sério do que imaginei.
Paona pediu para que eu me concentrasse, para mostrar a ela meu "poder"..
— Imagine ele se expandindo, os tais raios passando pelo seu corpo como se fizessem parte de você. Como se fosse impossível distinguir isso da sua pele.
Fechei os olhos e mesmo assim sabia que haviam mudado de cor. Senti choques pelo corpo, como se quisessem saltar da minha pele. Estava tudo dormente e desagradavelmente natural. Abri os olhos e meu corpo era coberto de raios, a nova ruiva me olhava como se seja lá o que que ela estivesse imaginado fosse incrédulo.
— Diminua a intensidade, até que eu possa lhe tocar.
Ela pediu e obedeci. Meu corpo voltou ao normal, contudo, meus olhos ainda eram negros e sentia eletricidade por dentro dos meus ossos. Paona ergueu as mãos para que eu a tocasse e quando o fiz ela estremeceu, mas se manteve firme e com postura, estava sentindo dor e era evidente. E eu também estava por saber que provocava aquilo.
Ela continuou ali, segurando minha mão, estática, como se não houvesse mais noção de tempo ou espaço, estava concentrada.
E de repente, os olhos dela ficaram negros, e ao redor de nos se fez um círculo de fumaça negra. Paona me soltou imediatamente e sentou - se no sofá.
- Então não era só um mito, esse tempo todo era possível. - ela disse sussurrando para si mesma.
- O que é possível? O que tem de errado? Me diz! - exigi furiosa
- Desde que eu me entendo como feiticeira, e como pessoa, existe uma lenda, um mito, que diz que quando se mistura sangue de demonio no corpo de um anjo, se cria um poder neste anjo, um poder muito forte e muito perigoso. E as asas, as asas são..
- São negras - falei e deixei que as mesmas se abrissem, e todos as olharam.
Desabei no sofá porque não havia outra reação, porque não haviam mais forças..
- E o que isso quer dizer? - Isaac perguntou
- Eu não sei, era só uma lenda, e sempre foi só isso. Mas o que tem dentro dela é muito forte, capaz de matar, foi feito para matar.
- Não tem um jeito de tirar isso dela? - Matheus falou
- É como tentar separar as veias do sangue. Impossível, e mataria Gabriela - Linda o respondeu.
- Eu sou o que agora? Uma arma?
Ninguém me respondeu
Além de tudo eu era perigosa, havia mal em mim. E eu não sabia o que fazer com ele.
Mas também não havia tempo, depois que observei um bater de asas e barulhos perto da porta.
Me levantei para ver o que era, todos me olharam apreensivos e quietos, apenas esperando. Abri a porta e encontrei apenas um céu azulado e belo, mas no chão havia uma caixinha preta, e nela estava escrito: um presente para um anjo
A peguei e entrei em casa novamente, com calma e medo abri a caixinha, e uma lágrima rolou no mesmo instante.
Dentro da caixa havia um dedo, um dedo anelar com um anel, o mesmo anel que o Rômulo sempre usava, porque fui eu que dei a ele antes de partir. O mundo parecia estar girando em velocidade máxima, o chão estava se abrindo diante dos meus pés.
Matheus pegou a tampa da caixa que eu havia deixado cair no chão quando a abri, e dentro dela estava um bilhete que dizia: Lembranças do seu pai, Gabriela, lamento que agora só vá encontra-lo no mundo dos mortos.
Klaus havia matado minha única espécie de família, eu não tinha mais ninguém.
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Entre Anjos & Guardiões 2: A Profecia
Fantasia"No jogo do bem e do mal só um pode prevalecer [...], aquilo que é fraco e se faz pequeno mostrará sua força, e todos os homens, ímpios ou não, verão o triunfo luminoso" "Não chore pelos mortos, mas tenha medo dos vivos" Reviravoltas, perdas, dor...