– Jack, temos que sair da casa. Agora. – Ouço uma voz familiar e alguma coisa me chacoalha pelo ombro. Levanto e vejo a silhueta do meu pai se levantar ao meu lado. Veste um suéter verde e calças azuis. Cabelo totalmente desarrumado.
– O que você está fazendo aqui? – Pergunto enquanto esfrego os olhos. Olho para o relógio, e mesmo não enxergando bem consigo constatar que ainda são 2 da madrugada – Essa hora? O que você quer?
– Jack, vamos logo. Temos que sair da casa. – Me segura pelos ombros com as mãos trêmulas e frias
– Por quê? – Solto suas mãos e me sento na cama, tentando fazer a expressão menos sonolenta possível. Sinto que disse em tom irônico.
Antes que pudesse dar sua resposta, ouço passos vindos da escada e viro meus olhos para além da porta. Dois policiais jovens e um perito com uma câmera de aparência experiente passam pelo corredor.
– Eu disse para você levar ele daqui – Esse último diz enquanto me aponta ao passar pela porta do meu quarto, se dirigindo ao corredor
– Vamos, Jack. Melhor lidar comigo do que com esses caras – Ele diz, saindo do meu quarto. Enfio os pés nas pantufas de coelho e visto uma camisa qualquer. Pego meu casaco no gancho ao lado da minha porta antes de sair, e logo depois de pôr o primeiro pé para fora do quarto sinto o chão encharcado. Vejo as luzes do banheiro acesas e os três caras que vi passando pela escada lá dentro. Me aproximo devagar, mas antes que pudesse chegar mais perto um dos policiais percebe e me empurra. Faz um gesto qualquer, apontando para a escada. Me viro em direção à ela e sinto o sangue se esvair do meu rosto. Vejo de relance manchas vermelhas nos ladrilhos do banheiro. Caminho devagar até o primeiro andar, onde estão mais policiais e um deles está falando com meu pai, que está aparentemente nervoso.
– Que merda tá acontecendo aqui? – grito, enquanto desço a escada. O policial que estava falando com meu pai se vira para mim
– Então, você chegou agora?
– É o que parece – respondo ironicamente
– Pelo o que parece, vocês não têm muito diálogo – olha para o meu pai logo depois de dizer isso – Prazer, sou Jonathan McCoy, investigador da polícia de Stringway. Meus amigos me chamam de John – se vira para mim e caminha até a minha direção, ao mesmo tempo que estende a mão. Sua expressão é de total despreocupação. Recolhe-a depois de uns dois segundos, vendo que não vou apertá-la. Olha para o teto, como quem não quisesse estar ali
– Eu sei quem você é. E não sou seu amigo – digo, olhando-o fixamente nos olhos – Custa tanto assim explicar que porra que tá acontecendo aqui?
– Bom saber que você ainda lembra de mim. Só achei que deveríamos ter mais afeição – coça atrás da cabeça, por baixo do boné da polícia – Bem, é algo meio difícil de um estranho dizer, mas...
– Sua mãe está morta, Jack – meu pai responde, do fundo da sala
As palavras soam como balas.
– Isso é algum tipo de brincadeira? – solto um sorriso forçado – Se for, para que é maldade
Escuto passos vindos de cima da escada e vejo dois homens de macacão cinza descendo os degraus, cada um de um lado, carregando uma maca com um enorme saco cinza lacrado em cima. Logo atrás vem os dois policiais e o cara com uma câmera, que faz algum gesto para John. Todos passam pela porta da frente. John olha para mim com o mais irônico dos olhares que aqueles olhos poderiam fazer
– Acha que alguém aqui está brincando? – fala, com um sorrisinho meio torto na cara
– Não, não... de onde esses caras saíram? Eu não vi eles subindo, como assim, tão rápido? Não, o que era aquilo na maca?
– Você estava de costas para a escada, ocupado demais tentando parecer durão e confiante, enquanto os caras do IML subiram lá em cima pra buscar o corpo da sua mãe. Simples assim – dá de ombros e sorri com os lábios fechados – Pois é, parece que já terminei por aqui – fala, fechando as mãos em palmas silenciosas, enquanto dá uma última olhada pela casa. Fecho os punhos, e sinto meus braços tremularem. Tento me manter o mais firme possível. Não demonstrarei nenhuma fraqueza perto desse cara
– E as perguntas? Você não terminou... – meu pai diz, do outro lado da sala, ainda parado em seu lugar
– Já sei de tudo que preciso. Depressão, bebidas, drogas, uma lâmina. Suicídio. – interrompe meu pai antes dele terminar, e diz no tom mais despreocupado possível, sem ao menos fazer contato visual com o papai enquanto caminha em direção à porta da frente – Boa sorte, Jack – diz, enquanto passa por mim e me dá um tapinha no ombro
Espero eles saírem e fecho a porta da frente
– Pai, cadê a Marylin? – me viro para ele
– Chamei a tia Sheila para levar ela para a casa da sua avó – está fitando o chão – Sinto muito, Jack – olha rapidamente para mim, depois volta a encarar o piso
– Não, não sente – me viro e corro para as escadas. Corro pelo corredor totalmente escuro, até chegar à porta do banheiro, que está aberta. Acendo a luz e vejo a banheira transbordando com água vermelha. As paredes manchadas de sangue. Um frasco de antidepressivos vazio flutuando pelo chão. Uma garrafa de vinho pela metade. Sete latinhas de cerveja. Dois tocos de cigarro no balcão. O piso alagado manchado de sangue. Sinto algo tocando meu pé, me abaixo e vejo uma lâmina trazida pela pequena corrente. A apanho e encaro. Está fria e com pequenas manchas de sangue seco
– Disseram que para deixar o banheiro do jeito que está – meu pai aparece caminhando no corredor até minha direção, com as mãos nos bolsos e o rosto virado para o chão – Talvez voltem aqui amanhã e querem tudo intocado
– Não está mais intocado – largo a lâmina e o som de metal se chocando contra os ladrilhos e de água espirrando ecoa pelo silêncio. Sigo na direção do meu quarto e meu pai bloqueia meu caminho
– Vamos para a casa da sua avó. Ela está nos esperando
– Pode até estar me esperando – digo em um tom baixo e melancólico – mas com certeza não está esperando você
– Jack...
– A culpa é toda sua – o empurro para o lado e ando até o meu quarto, e antes de fechar a porta a seguro ao ouvir uma risada irônica
– Toda minha? – meu pai começa a falar, em um tom bem mais alto, atrás de mim – Eu posso até ter deixado ela, mas pelo menos não fui eu quem fazia ela se lembrar todo santo dia que ela estava sozinha!
– Verdade, a culpa não é só sua – encaro o nada e ignoro o que ele disse – É também daquela puta da Jane. E daquela filha da puta da Tina – fecho a porta em um baque e tranco.
Escorrego pela porta e sento no chão de costas para ela. Em meio aos gritos vindos do outro lado, dos chutes e dos palavrões; o ódio, a tristeza e a confusão dentro de mim se acumulam em lágrimas nos meus olhos. E as lágrimas começam a cair. Caem como se nunca fossem parar, até tudo ficar em silêncio de novo. Ouço o som do carro do pai ligando, e ouço ele se afastando.
Tudo mergulha em um confortante e macabro silêncio.
Por um momento pude jurar que ouvi no meio dos choramingos e lágrimas mais um lamento na casa além do meu.

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Boneca (NV)
TerrorDepois do suicídio de Judie, seus filhos Jack e Maryllin vão passar uns tempos no casarão da vovó Mercy junto com seu pai, Tyler, sua madrasta Jane e sua filha Tina nos arredores de Might Hallow, onde algo terrível aconteceu (e ainda acontece). ...