Hoje é mais um dia, mais um risco no calendário, mais um céu azul lá fora (ou seria o mesmo céu de ontem?), com minha mãe me chamando mais uma vez para o psicólogo. Me levanto, apática, como todos os outros dias. Tomo banho e coloco um vestido azul escuro, até os joelhos, com sapatilhas baixas na mesma cor, sem maquiagem, os cabelos pretos soltos, lisos, sem nada de novo.Encaro meu reflexo no espelho: rosto pálido, ok. Olheiras, ok. Olhos vermelhos, ok. Suspiro, mais um dia, vamos lá, é só mais um dia. Escuto meus pais conversando na mesa da cozinha enquanto estou indo para lá. Eles falam baixo, não querem que eu escute eles discutirem sobre o tratamento no psicólogo e os remédios serem inúteis, eu ainda grito toda noite e não consigo me forçar a acordar do pesadelo. Minha mãe ainda tem esperanças, ela acha que o tempo pode resolver.
- Bom dia querida – Ela me diz quando entro na cozinha de casa.
- Olá mamãe. Olá Papai. – Hoje faz onze meses que aboli os cumprimentos como " bom dia/tarde/noite".
- Como se sente hoje Laura? – Papai sempre foi mais direto e quer muito ver a minha melhora.
- Me sinto normal e vocês? – Não vou dizer que me sinto bem, pois não seria verdade.
- Estamos bem, na medida do possível. Queremos conversar com você. – Eu me sento, com um copo de suco de laranja. Não vou me forçar a comer agora, o resultado seria catastrófico.
- O que houve? – Pergunto, sem real interesse no assunto.
- Querida, nós sabemos o quanto você sofreu no último ano – não, eles não sabem, mas fico em silêncio – nós entendemos que algumas separações são piores que as outras, mas não sabemos mais o que fazer.
- Você não reage – mamãe continua, porque papai parece não conseguir falar – os remédios não fazem efeito. Nós sabíamos que talvez você não voltasse para a universidade no semestre passado, mas pensávamos que neste você pudesse estar lá.
- Talvez não de corpo e alma, mas pelo menos tentando, mas não vemos isso em você.
- Sinto muito – eu abaixo a cabeça, sei que sou uma decepção para eles, mas não tem muito o que eu posso fazer, não sei sair do lugar que estou.
- Não querida – papai coloca a mão no ombro – nós é que sentimos muito. Por não conseguirmos te ajudar como você merece.
- Nós estávamos pensando e conversando com os seus médicos, talvez fosse melhor você viajar por algum tempo, para descansar. – Depois de tudo, meus pais queriam me internar. Não posso culpa-los, eu sou um peso morto.
- Tudo bem – concordo, sem levantar a cabeça. Não quero ver a dor nos olhos dos dois.
Eles começam a falar sobre o lugar, sobre o tratamento e sobre como tudo vai ser muito bom pra mim, mas desligo a mente por alguns instantes, tentando lembrar como eu era antes desse buraco negro que eu virei, sugando toda a alegria ao meu redor. Passando o dia olhando para o teto, tomando os remédios por obrigação. Sem falar com ninguém, sem comer direito, emagrecendo semana a semana, tomando vitaminas, tendo medo de dormir à noite, pois os pesadelos nunca param.
- Preciso levar alguma coisa minha? – Pergunto quando acho que eles já pararam de falar.
- Há regras no local querida – balanço a cabeça, concordando.
- Tudo bem – murmuro.
- Saímos em uma hora, caso queira ligar para alguém e se despedir.
Saio da cozinha, levando meu suco comigo. Eles sabem que eu não vou ligar para ninguém, mas este é o jeito deles de me avisar que querem ficar sozinhos. Fecho a porta do quarto e sento na cama, não tem nada aqui que vou sentir falta, nada que vai me fazer chorar a noite, então só fico sentada na cama, esperando tempo passar. A única coisa que eu faço é tomar um calmante, pois não consigo suportar viagens de carro sem ele.
Nunca vou entender a fixação dos médicos com natureza para acalmar nossa turma, os doentes mentais. Eu detesto natureza, sou o que um professor meu chamaria de " verdadeira aluna de exatas", não tem nada de outras áreas em mim. Mas o manicômio, ou casa de férias, como papai e mamãe apelidaram, fica no interior da cidade, quase três horas de carro. Cercado por árvores por todos os lados, um lago, muitas flores e bancos ao ar livre.
- Me parece aconchegante – Diz mamãe, enquanto entramos. Não me dou ao trabalho de responder, ainda estou anestesiada pelo remédio.
Meu novo médico, Guilherme, é um rapaz negro, de pelo menos dois metros, magro e com um sorriso que foi treinado para acalmar qualquer um que possa ter medo dele. Ele tem olhos castanhos e posso ver a tatuagem saindo pelo colarinho da sua camisa branca, o que me faz desgostar um pouco menos dele.
- Gostei do vestido – Ele comenta, com um sorriso na minha direção. Apenas balanço a cabeça. Não gosto de falar com estranhos.
Eles me deixam em um espaço que suponho ser uma sala de estar. As paredes são de um amarelo claro, quase creme, com delicados decalques de flores, também em tons claros. Há mesas de chá, cercadas de poltronas com assentos confortáveis e uma única namoradeira, virada na direção da janela. Um piano descansa em um dos cantos da sala, esperando para ser tocado. Me lembro da sensação de tocar um instrumento como este e me viro para longe dele, querendo esquecer.
Não sei dizer quanto tempo eles demoram para voltar, mas fico o tempo todo sentada em uma das poltronas, observando os desenhos ao redor da mesa, como se uma toalha bem bordada pudesse apagar toda a idade daquela mesa. Assim como meus pais acham que uma temporada " de férias" pode me fazer parecer como nova.
- Muito bem querida, nós temos que ir agora – Mamãe dá um beijo na minha testa, sabendo que não vou permitir que ela me abrace.
Papai também beija a minha testa, talvez por alguns segundos mais e me encara. Vejo a tristeza em seus olhos e a culpa me atinge, como todos os dias. Mas hoje é só mais um dia, então só a coloco junto com o punhado de ontem, que está junto com todos os outros. Quando eles saem, sou apresentada ao meu quarto e me mandam descansar, que amanhã eu começo o novo tratamento e tenho que estar descansada.
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Me Espera
RomanceLaura teve dois dias terríveis em sua vida e isto mudou tudo... Sua paixão pela vida, seu amor, sua alegria, o brilho nos seus olhos, tudo se foi. Seus pais tentaram de tudo, até acharem ser obrigados a coloca-la em uma casa de repouso, acreditando...