Catorze Dias Antes

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- Então, eles choraram? – O Guilherme me pergunta depois que conto sobre ontem.

- Os dois, foi só tocar uma música mais carregada – faço as aspas com a mão – de emoção que abriram o bico.

-Tem alguma ideia do que eles fazem aqui?

- Nenhuma - comento, dando de ombros - mas, ela é muito nova para estar aqui, não?

- Todos são novos demais para estar aqui, todo mundo tem uma vida inteira pela frente ainda.

Pondero um momento sobre o que ele diz, eu não vejo uma vida à minha frente, mas sei que não posso discutir isso com ele. Ele vai tentar me convencer do contrário e eu não estou afim.

- É triste que qualquer um esteja aqui, mas ela tem o que, quinze anos?

- De fato, ela é nova - ele dá um sorrisinho esperto - mas se te espanta tanto, por que você não conversa com ela?

- Ela não me parece afim de conversa - devolvo o sorrisinho.

- Você também não, mas nós dois podemos passar horas conversando, não?

- Tudo bem, tudo bem - o sorriso dele se alarga - eu converso com ela, pelo menos tento.

- Ela precisa de uma amiga - ele pega um pão de queijo da cesta - e você poderia ter alguém além de mim pra conversar, eu sou chato.

- Muito chato - solto uma risada e percebo a alegria que passa nos olhos dele.

Não é que eu tenha esquecido como rir, mas não vejo mais tanta graça nas coisas. O Guilherme - acho que ganhei o direito de chamar o psiquiatra pelo primeiro nome - acha que eu não sei o que ele está fazendo. Se eu ajudar os outros, meus problemas vão parecer menores e eu vou conseguir lidar com eles. Admito que a técnica é inteligente e teria funcionado se fosse da primeira vez, mas eu perdi muito agora. Nada me impede de tentar ajudar aquela menina, mas eu não preciso me apegar a ela, não mesmo.

Resolvo começar na hora do almoço, pergunto a enfermeira se posso sentar ao lado da menina, sem ela. Ela me dá um sorriso simpático e me diz que vai estar por perto se eu precisar. Pego minha comida e sento na frente dela, que arregala os olhos, mas não levanta a cabeça.

- Tudo bem se eu me sentar aqui? - Ela apenas balança a cabeça em concordância - Obrigada.

Eu faço praticamente um monólogo durante o almoço, falando da comida e do suco, mas quando chegamos na sobremesa, ela dá um sinal de vida.

- Afe - comento - detesto melão.

- Eu gosto - ela dá um sorrisinho torto, parece quase surpresa por ter falado.

- Eu não gosto do melão daqui, é muito aguado - explico.

- É o melhor que já comi.

- Uau, preciso te apresentar os melões da horta dos meus pais - ela me encara, pensativa - Sério, eles deviam ganhar prêmios.

- Gostaria de provar.

Nossa grande conversa termina aí, nós nos separamos para escovar os dentes, mas digo a ela que estarei no piano pouco depois. Não me espanto quando estão os dois à frente do piano pouco antes do meu horário habitual, por sinal, isto me deixa um pouco desconfortável, não quero que isso se torne uma obrigação para nenhum de nós.

- Boa tarde - ele me cumprimenta, como sempre, sem sorrir.

- Boa tarde - tanto sorrir, lembrando o sorriso social que o Guilherme sempre tem no rosto.

- Eu posso pedir uma coisa? - A voz dela sai fina, quase num sussurro.

- Claro, adoro pedidos - Minto. A verdade é que sempre detestei tocar o que os outros querem ouvir. Eu toco para mim, mas tudo bem.

- Queria que você não tocasse aquela música de novo - ela suspira, naquele fiapo de voz - eu sei que os médicos daqui querem que a gente aprenda a lidar com a dor, mas não me sinto à vontade para ficar cutucando ela.

- Ah claro, sinto muito se magoei vocês ontem.

Nenhum dos dois fala nada, o que me faz pensar que eu realmente os magoei. Droga, nem no piano, que eu não preciso abrir a boca para nada, dá certo. Me levanto sem dizer nenhuma palavra e vou para o meu quarto, não sou obrigada a estar lá, eu prometi uma tentativa pro Guilherme é claramente não deu certo, sinto muito.

Quase consigo ouvir a voz dele enquanto caminho, me dizendo que só uma tentativa é muito pouco, que eu devia me esforçar um pouco mais, que ele esperava mais de mim. Sinto muito por ele, mas ele vai ter que procurar outro tipo de tratamento para poder se sentir tranquilo quando deitar a cabeça no travesseiro a noite, achando que fez o trabalho dele.

Passo o resto do dia no quarto, lendo e pensando. A raiva vem e vai durante horas, se misturando com a tristeza que já reside dentro de mim. Peço desculpas a enfermeira, mas não tomo o lanche da tarde. Ela parece ficar um pouco chateada, então pergunto se eles não tem um teclado que eu posso tocar no quarto.

- Dando um tempo nos shows? - Ela me pergunta, querendo saber a verdade.

- Pelo menos por um tempo, a plateia pode ser muito exigente.

Ela sai do quarto e eu penso que dei uma boa resposta, ela vai contar pro medico e ele vai entender o que eu quis dizer. É engraçado o quanto ele acha que me conhece, que não é nem de longe quem eu realmente sou.

A enfermeira volta com o médico no encalço dela, o que me deixa mais irritada, ele tinha que vir tão rápido? Eles colocam o teclado em um dos cantos do quarto e ela sai, não sem antes sorrir para o meu agradecimento.

- Então - Ele começa, enquanto arrumo as minhas partituras - problemas com a audiência?

- Pois é - respondo, sem olhar para ele.

Ele não diz mais nada, mas também não vai embora. Escolho um dos meus clássicos preferidos, Sentimentos - A Bela e a Fera, e me sento na frente do teclado, respiro fundo e começo a tocar.

Consigo perceber o momento em que ele fecha os olhos, que se deixa levar pela música. Mesmo que ele esteja ao meu lado e eu o veja apenas pela visão periférica percebo seus ombros relaxando, suas mãos pendendo ao lado do corpo, não mais com os braços cruzados e um sorriso leve surgir nos seus lábios.

Percebo também o quanto a reação dele me toca, o quanto ela me faz lembrar o outro que também relaxava, esquecia o mundo e se entregava ao que quer que fosse que eu estava tocando. Sinto minha respiração acelerar e o pânico começar a me invadir.

Paro de tocar e fecho os olhos.

- Laura?

Sinto sua mão em meu ombro e, de repente, tudo é demais pra mim. Aquele dia estupido, todos os tratamentos que já fiz, eu estar naquele lugar, o piano, a música, o choro daqueles dois e a mão dele no meu ombro, tudo é demais pra mim e eu começo a chorar.

Não o choro contido de todas as noites, a dor me atravessa como um punhal e o peso do meu corpo já é demais para que eu possa aguentar também. Ele me segura em um abraço antes que eu caia de joelhos no chão e me deixa chorar, molhando a manga de seu avental. Me deixa chorar até eu dormir de exaustão, ainda com a cabeça no seu ombro e os braços segurando os dele, como se eu pudesse enterrar naquele aperto toda a dor que está dentro de mim.

Me EsperaOnde histórias criam vida. Descubra agora