Dezenove Dias Antes

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- Sinto muito Laura, o doutor passou a noite acordado cuidando de outro paciente – a enfermeira me conta, com as olheiras que me dizem que ela também ficou acordada – mas há outro médico de plantão, você pode conversar com ele.

            - Não, tudo bem, amanhã eu converso com o Doutor Guilherme, obrigada – tento mostrar um sorriso para ela, mas passei tanto tempo sem sorrir que não sei se consigo.

            Tenho a manhã livre, então resolvo olhar a coleção de partituras que eles têm na biblioteca. Eu tenho tocado todos os dias à tarde, alguns param para escutar, sorriem enquanto eu toco. Isso me faz sentir como se eu pudesse ajudar alguém, mesmo que eu não tenha mais como me ajudar.

            Eles têm muitas músicas famosas na coleção, resolvo pegar algumas partituras e pergunto para a mulher da recepção se posso leva-las até o piano.

            - Claro que sim, por favor, deixe a porta aberta, gosto de te ouvir tocar – saio da sala um pouco encabulada, sei que não toco muito mal, mas não achei que as pessoas pudessem gostar.

            O piano está vazio, como sempre e eu coloco as partituras por ordem alfabética, exatamente como peguei. Antes que eu comece a tocar, já há duas pessoas sentadas na frente do piano, são os que não perdem uma música minha, que ficam lá do momento em que eu sento, até o momento em que me levanto.

            Há uma menina, ela deve ter menos de dezoito anos e não posso deixar de me perguntar o que ela faz lá, sendo tão nova, mas não converso com ela. Aliás, não converso com ninguém além do médico. Não conta o que eu falo com as enfermeiras, porque só respondo o que elas perguntam, as vezes somente com a cabeça, sem palavras.

            O homem deve estar quase nos trinta anos, ele é triste, tudo nele é triste. Seus olhos, sua maneira de andar, como ele sempre chora quando me escuta tocar, como ele está sempre nos cantos, sozinho. Ele come, sai para os passeios, mas nunca parece estar ali, por estar muito imerso na sua própria tristeza.

            Começo a tocar e eles fecham os olhos, como sempre fazem, cada um absorto nos seus próprios problemas. Ele chora, ela sorri. Eles são tão opostos e ficam num conjunto tão bonito quando juntos, escutando a música, que isto é algo que me motiva a tocar mais, até o momento que eu percebo que estou tocando de olhos fechados, que a música começou a chegar no lugar que ela não podia, sinto as lágrimas quentes se acumulando nos meus olhos e paro de tocar. Junto as partituras e vou para o meu quarto.

            Sento na cama, fechando os olhos, tentando controlar tudo o que quer desesperadamente sair de mim e eu não tenho coragem para enfrentar. Eles estão quase ganhando de mim quando uma batida na porta me distrai.

            - Com licença – o homem que me escuta está parado na porta do quarto – eu não posso entrar, mas queria saber se está tudo bem.

            - Estou ótima – respondo rispidamente.

            - Certo, me desculpe o incomodo – ele sai e posso ouvir a enfermeira atrás dele.

            Respiro fundo, tentando manter a calma, não preciso de ninguém se preocupando comigo, nem falando comigo, eu não quero amigos aqui. Deito na cama e olho para o teto até conseguir voltar para o estado que estou há quase um ano, ignorando toda e qualquer coisa que esteja próxima a mim, qualquer sentimento ou sensação.

            Passo o resto do dia no quarto, olhando para o teto e saindo apenas na hora do banho e das refeições. Não durmo durante o dia, mas mesmo assim os pesadelos me perseguem e eles são tão reais que quase peço a dose de remédios mais cedo, mas temo a reação das enfermeiras, então aguento todas as alucinações, sem emitir nenhum som

Me EsperaOnde histórias criam vida. Descubra agora