Não foi o cabelo grisalho e bagunçado que escorria por sobre seus olhos como a velha cortina de crochê de minha avó. Nem as rugas e tampouco as verrugas. Nem mesmo as roupas puídas e fora de moda. Muito menos pelas manchas em seu jeans ou do barro seco em seus sapatos.
Foi o sorriso. Apenas o sorriso. Ele morava no prédio? Trabalhava lá? Ou era apenas um visitante? Ninguém sabia. Ninguém perguntava. O que todos sabiam é que em todos os bailes que organizávamos ele estava lá, sentado numa cadeira velha num canto escuro, observando-nos. Mas sempre sorrindo. Não que nossos pais não estranhassem sua presença. Mas as suspeitas desapareciam com um mero vislumbre daquele sorriso. Ninguém que sorria daquele jeito meio bobo poderia fazer mal a algum de nós. Então ele ficava lá. Alegremente anônimo. Uma testemunha silenciosa do início de nossa puberdade.
Com o hábito ele se tornou parte do cenário. Nem dávamos conta dele, tão entretidos estávamos com nossas paqueras. Júlia gostava do Ricardo, mas fingia que não por causa de Marcos, pois sabia que ele era apaixonado por ela. Ana queria ficar com João, mas depois que beijou o Marcos ele nem dava mais bola pra ela. Érika não queria ficar com ninguém. Nem com o Tadeu, que a rondava como um fantasma a noite toda, para desespero da Ritinha.
E eu?
Eu era feio demais para qualquer menina gostar de mim. Ao menos abertamente. O que contribuiu muito para eu virar os lados. Então eu ficava no som, cuidando das músicas. Rápidas, lentas, dançantes, etc. Sozinho com minha cadeira, minha coca cola e minha caixa de discos, no fundo do salão. De vez em quando eu deixava tudo preparado e tentava me arriscar numa dança ou em outra. Mas eu sempre perdia pra vassoura. Numa dessas vezes pensei ter visto o sorriso do velho mudar de simpático para de zombaria. Só por um instante, rapidamente esquecido pela vergonha da rejeição. E eu voltava ao meu posto. A alma penada da festa. Mas naquela noite tinha alguma coisa no ar. Um burburinho. Normalmente eu nem ligava, pois qualquer burburinho certamente não era a meu respeito. Nunca tinha beijado ninguém. Era um "virgem de boca", como teimavam em me lembrar. Mas sabe quando você sente aquela coceirinha na nuca quando sabe que estão falando de você?
Pois é. Estavam. Tentei continuar com minha tarefa sem dar atenção. Mas não tinha jeito. Elas estavam lá, cochichando tanto que estavam deixando até os outros garotos inquietos. Quase ninguém dançava. Estava ficando chato. Decidi colocar uma música mais agitada. Para quebrar aquele climão. Não funcionou. Ninguém na pista. Foi a Lia que chegou perto de mim e me disse para colocar uma balada na próxima música. Eu já estava acostumado com aquilo. Era hora de transformar em ação todas as paqueras e indiretas da semana. Era a hora de formar os casais. Abri um sorriso e disse que tudo bem. Era minha tarefa. Ela saiu dando risadinhas e se juntou ao grupinho do cochicho. Pelo que consegui entender a vítima era a Carol. Só não consegui identificar quem seria seu par. Claro, como poderia? Confesso que fiquei surpreso quando os primeiros acordes da balada começaram e ela foi empurrada pelas amigas em minha direção. Se eu queria dançar? Claro. Nem pensei. Quer dizer, pensei. "É hoje! É hoje!". Carol nunca foi um de meus amores platônicos. E olha que eu tinha vários. Baixinha, meio gordinha, cabelos estranhos. E usava aparelho. Todo mundo dizia que era ruim beijar meninas com aparelho. Especialmente quando você também usava um. Mas que escolha eu tinha? Vamos dançar. Ela se abraçou a mim quieta. Não me olhou nos olhos. Encostou a cabeça em meu ombro e ficou, gingando seu corpo quase no ritmo da música. Fiquei quieto também. Dois bailarinos desengonçados e mudos. Mas todos olhavam para nós. Todos! Éramos o centro da festa. Risinhos aqui, comentários acolá. Havia maldade no ar, mas eu não queria nem saber. É hoje! É hoje!
De repente ela tomou coragem e me olhou nos olhos. Em total silêncio. Congelamos no meio da dança. Respirou fundo e, de olhos fechados, veio na direção de minha boca. Beijei. Beijamos. As dúvidas começaram com o primeiro toque de nossos lábios. Beijo de língua? Como faz isso? Agora eu chupo ou assopro? Cabeça pra esquerda ou pra direita? Olhos abertos ou fechados? Posso respirar? Sem resposta alguma nos beijamos até o final da música. Ela estava assustada. Será que era a primeira vez dela também? Será que fiz alguma coisa errada? Ou muito certa? Fala alguma coisa!
— Quer namorar comigo?
Fui eu quem disse isso? Ela me olhou por um instante e depois saiu correndo, me deixando como um espantalho rejeitado pelas gralhas no meio do salão. As risadas vieram em seguida. Todo mundo riu. Até meus amigos. Como ninguém cuidou do som a única trilha sonora no ambiente eram os risos. Senti minhas bochechas queimarem. Tremia. Corri envergonhado para meu posto e coloquei qualquer música. Eu queria sumir, desaparecer da face da Terra. Não chora! Burro, burro! O que aconteceu? Não chora! Por que você disse aquilo? Não chora!
O velho então levantou de sua cadeira e parou do meu lado. O sorriso estava lá ainda, zombando de mim. Sai de perto de mim, velho idiota! Eu queria gritar, mas se falasse qualquer coisa ia cair num choro descontrolado. Não chora! Ele me olhou por um instante e pousou a mão ossuda em meu ombro. Para de sorrir! Me deixa em paz! De repente ele não parecia mais tão velho. Atrás da cortina de seus cabelos vi compreensão em seus olhos. Compreensão e um amor quase paterno. Era um olhar familiar. Familiar até demais. Ele apertou de leve meu ombro e me disse uma única frase:Vai ficar tudo bem, eu garanto.
Vi através de minhas lágrimas ele indo embora. Passou por todos no salão e desapareceu pela porta. Aquele foi o último dos bailes que fizemos. Estávamos crescendo. Era hora de descobrir novas festas. Novas pessoas. Novas experiências. Novos lados. A vida se abria cheia de possibilidades. E nunca mais vimos o sorriso do velho do baile.
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Submundos literários
Short StoryPara ler você tem que entender. Pra entender você tem que ler. Se há um mistério nessa história não sei te dizer, mas que é estranha eu posso afirmar. Se algum dia você entender o contexto dessa história me diga. Pode ser balela ou somente tudo fru...