Capítulo 1 - O Tempo perdido

164 16 9
                                    


Júlia fazia seu caminho habitual pra escola. “ Eu vou morrer de tédio sem eles. Todos os meus amigos estão viajando. E eu em casa estudando pra maldita prova de recuperação de história!”.Ela já estava enjoada daquele caminho. E ainda faltava um ano. O caminho seria mais monótono se não fosse por um pequeno detalhe. Um pequeno e velho detalhe. Um antiquário. Era um lugar com cheiro de guardado. Júlia, sempre que podia, passava por lá. Mesmo que não fosse comprar nada, ela gostava de passar por lá. A senhora que sempre ficava na entrada do antiquário estava lá como sempre. Parecia ter uns oitenta anos, mas tinha mais jovialidade que qualquer outra senhora mais jovem. Era uma velhinha simpática, com longos e lisos cabelos absolutamente brancos, esguia e alta e que sempre tinha algo a falar sobre as peças que havia lá. Júlia passou e cumprimentou a velha. Júlia não sabia seu nome. Ela nunca havia lhe falado e Júlia nunca havia perguntado. Ela sempre se perguntava sobre a razão daquela senhora morar sozinha, nunca tinha sido vista com família.
  Mas isso realmente não importava porque ela tinha uma prova de recuperação pra fazer. “Prova maldita!”, Júlia pensava. Ela sabia que não adiantaria amaldiçoar a prova trinta vezes, ela teria mesmo que ir logo no início das férias fazer a prova de recuperação final. Não sabia quem mais faria a prova com ela. Entrou na escola e olhou o relógio. Estava atrasada, como sempre. Correu e entrou na sala de aula sem pedir licença.
  _ Boa tarde, Júlia! _ a professora falava com um ar irônico, algo realmente irritante para Júlia. Mas a errada era ela.
_Bom dia._ Júlia murmurou entre os dentes.
O “Bom dia” quase não saiu porque Júlia se viu entre as pessoas mais estranhas da turma: Sara, uma CDF que só usava roupas estranhas, uns óculos de armação exageradamente grossa, que vivia com os cabelos longos e castanhos presos numa trança e que Júlia não sabia por que estava ali, Gabriel, um garoto que mais parecia uma menina e que parecia uma mistura de vocal feminino de banda de rock gótico com uma espécie de modelo , Erick ,uma figura popular por ser o piadista da turma e Nicolas, um novato que havia entrado na escola no meio do ano letivo. Júlia percebeu que só podia ser algum tipo de maldição. Como ela que havia estudado tanto tinha ficado para recuperação? Mais estranho ainda era a mais inteligente da turma também estava naquele meio. Júlia se sentou atrás de Gabriel e começou a fazer a prova. “Porque eu tenho mesmo que estudar história?”. Mais uma coisa que ela não sabia explicar. Ela não conseguia se concentrar. O cabelo artificialmente ruivo do garoto a sua frente lhe parecia mais interressante que a prova. Gabriel prendeu os longos cabelos num rabo-de-cavalo. Júlia se voltou para a prova.
Quando todos acabaram, a professora liberou os alunos. Sara esbarrou em Júlia e murmurou um “desculpe”. Gabriel passou por ela apressado. Júlia saiu caminhando devagar e passou pelo gramado no pátio da escola. Gabriel estava sentado debaixo da sombra de uma amendoeira e Júlia de longe percebeu que o garoto acendia um cigarro. “Odeio cigarro! Agora entendi a razão da pressa. Se aproveitando da escola vazia.” Ela nunca havia trocado mais que duas palavras com ele. Ele parecia ainda mais estranho fumando daquele jeito.

*  *  *

Uma semana depois Júlia fazia o mesmo trajeto. Passou novamente pelo antiquário. Fazia muito tempo que ela não parava lá. Decidiu que entraria, afinal ainda tinha tempo antes de ir pra escola. A senhora dona do antiquário estava lá, como sempre. Ela cumprimentou Júlia com um sorriso jovial.
_ Olá, minha filha.
_Oi, como vai a senhora?
_Bem. Você quer entrar?
_Sim... Quero sim.
_Entre Júlia.
Lá estava tudo que havia de mais antigo na cidade, com certeza. Tinha aparência de museu. Pela localização das peças, Júlia percebeu que a velha não havia vendido nada.
_Como vão as vendas?
_Ruins. Mas isso não me importa. Gosto quando as pessoas simplesmente passam aqui e admiram minhas peças.
_Ah._ foi tudo o que Júlia conseguiu dizer.
Júlia se perdia no meio de tantos móveis antigos e tapeçarias. Havia um espelho de bronze que sempre a encantava. E ela ficava sempre se mirando nele. Havia poltronas e cadeiras de espaldar alto. Mesas e armários. Estátuas e quadros. Tudo muito conservado e dando um ar de nostalgia ao local. Mas Júlia gostava disso. Ficou pensando de onde teriam vindo tantos móveis.
_A senhora nasceu aqui?_ Júlia deixou fugir o pensamento.
_Não._respondeu a velha sem olhar para Júlia.
_Se não for muita intromissão, de onde é a senhora?
_Não é intromissão sua, mas você não deveria perder tempo com perguntas tão triviais.
_A senhora tem razão._ Júlia mentiu claramente._ A senhora está aqui há muito tempo?_ ela tinha que insistir.
_ Realmente eu nem me lembro há quanto tempo estou aqui.
Júlia se voltou pro espelho de bronze e viu pelo espelho que a velha olhava para ela.
“Será que ela pode me ver além da imagem? Acorde, Júlia! Chega de pensamentos idiotas.”Júlia pensava para si mesma. Ela olhou para seu relógio de pulso. Estava parado. “Há quanto tempo eu estou aqui? Mais uma vez eu estou atrasada!”. E ela estava mesmo.
_ Ah meu Deus! Meu relógio parou que horas são?
_Não gosto de relógios minha filha...
Júlia nunca havia reparado. Mas não havia um relógio sequer no antiquário. Júlia se despediu da velha e foi pra escola. Sabia que estava atrasada. Tudo o que ela queria era saber o resultado daquela prova. Ela já estava ansiosa.
Chegando lá, entrou na sala de aula e sem olhar para frente se lembrou de dizer bom dia. Mas mais uma vez o bom dia saiu fraco quando ela olhou pra sala e não encontrou sua professora de história. Lá estavam os seus “companheiros de recuperação”. Todos olhando pra ela. Sara falou um “Bom dia” num tom até bem audível em relação aos costumeiros murmúrios. Gabriel só olhou para ela com bastante atenção e depois baixou os olhos. Nicolas falou um bom dia simpático. Erick olhou para ela com ainda mais atenção que Gabriel ,mas pelo menos falou bom dia.
_Onde está a professora?_Júlia perguntou.
_Não vimos ainda_ Gabriel respondeu delicadamente.
Assim que Júlia recebeu a resposta, a professora chegou com um ar cansado e doentio.
_Bom dia. Desculpe-me o atraso. Eu não estou me sentindo bem e não pude corrigir as provas. Vocês podem vir semana que vem?
Ninguém disse que não e alguns balançaram a cabeça num sinal afirmativo.
_ Fazer o que né... _Júlia sussurrou.
_Eu ouvi isso_ Nicolas sussurrou também.
Júlia sorriu. O aluno novo apesar de meio estranho era bem bonito. Tinha o porte firme, era alto, nem gordo nem magro. Se não fosse pelo jeans surrado e o tênis All Star que ele usava diariamente e parecia mais velho que ele, ele chamaria mais a atenção das outras garotas. Mas Júlia percebeu que o estilo meio largado combinava com ele. Ela reparou nos cabelos castanhos a altura do queixo do garoto. Ele era bonito.
A professora saiu murmurando palavras de despedida que ninguém ouviu. Nicolas iniciou uma conversa com Júlia.
_ Vi hoje você entrando naquele antiquário. Na verdade, já vi você entrando lá mais de uma vez.
_Eu costumo ir lá... Gosto daquele lugar.
_Eu também acho bem legal.
_Gosta de antiquários?_Júlia se interessou. Parecia estranho... Não combinava com ele.
_Sim... Me lembro de quando eu me mudei pra cá. Minha mãe foi lá e comprou uma cristaleira bem diferente. Ela tem até hoje.
_Gosto de coisas antigas e do ambiente que elas criam.
Enquanto eles conversavam, Sara prestava atenção na conversa. Ela também se interessava em coisas antigas.
_ Me desculpe mas... Vocês estão falando do velho antiquário?
_Sim_ os outros dois responderam juntos.
_Eu sempre quis entrar lá. Mas nunca entrei. Gosto de móveis antigos... são muito ligados a história._ a garota falava com um entusiasmo muito distante da habitual fala contida_ Eu gosto muito de história.
_Então acho que você está no lugar errado e na hora errada_ Nicolas falou e riu ironicamente para logo em seguida fechar o sorriso num gesto de arrependimento.
_Eu estou aqui porque trocaram minhas notas. Eu tenho certeza. Alguém mexeu no computador da escola. Todos estão falando nisso. Eu sempre fui boa em história.
_Você sempre foi boa em tudo!_ e pela primeira vez Júlia se permitiu rir para a garota. “Ela é estranhamente legal.” Júlia pensou;
Os três riram juntos.
_Eu passo bastante tempo estudando._ Sara falou e tirou os óculos.
“Sem os óculos de armação grossa ela parece bem menos estranha. É incrível que eles me pareçam menos estranhos agora. Será que eu também parecia estranha para eles?”
Júlia pensava. Ela olhou para si mesma. Vestia uma camiseta azul escuro e sua habitual calça jeans. Riu-se do velho  tênis All Star do Nicolas, mas o seu estava bem velho também. “O que meus amigos diriam se me vissem falando com eles?”
Os três ficaram conversando por muito tempo. Júlia sentia falta disso. Seus amigos estavam viajando e há muito tempo ela não parava para conversar com gente da idade dela.

O Segredo de PerséfoneOnde histórias criam vida. Descubra agora