Capítulo 17

9 4 0
                                    

Meu pai sempre achou que um dia teria um derrame ou um infarto fulminante – uma morte rápida e sem dor, tiro e queda. Mas a realidade não nos obedece. Ele teve uma morte lenta, com muito tempo para repensar tudo o que fez na vida. Em seu último ano na Terra, mais ou menos quando comecei a traduzir, ele e sua assistente principal começaram a localizar – numa época em que não existia o Google – as pessoas que ele tinha prejudicado na vida. Se a pessoa não estivesse viva, ele tentava ajudar o filho.

Foi uma trajetória dolorosa, mas necessária. No final, ele morreu praticamente sem nada. Ele, que na década de 1970 chegara a ensaiar ser rico, me deixou cerca de R$ 200 mil de herança – em parte, porque eu deixei que a minha mãe recebesse mais na meação. Algumas coisas mais difíceis de receber, eu aceitei para mim. Esse valor é livre de impostos, dívidas e honorários de advogado.

Logo que meu pai morreu, a atitude das outras pessoas começou a mudar. Do alto de sua arrogância, o advogado que cuidava do inventário (e em quem meu pai mais confiava) cacarejou para a minha mãe:

– Agora vocês vão ter que se virar porque o provedor morreu!

A gerente do banco onde tínhamos conta – o tal que o meu pai salvara da falência em 1984 – simplesmente deixou de atender nossos telefonemas. Quando alguém hackeou um cartão de crédito meu (que nem chegou às minhas mãos) e fez despesas indevidas, me trataram como se eu fosse um moleque. Ameacei levar o caso à ouvidoria do Banco Central e eles amansaram.

Entraram dois seguros de vida pequenos na minha conta e com um deles comprei, aos 27 anos, meu primeiro carro – uma semana antes do lançamento de Círculo de Fogo. Na véspera do lançamento, entrou um seguro maior, de R$ 300 mil – bem mais interessante. O suficiente para comprar um apartamento de bom nível e reformá-lo.

O lançamento de Círculo de Fogo, na Livraria Argumento, foi outro belo evento para mim, com amigos da nova e da velha faculdade. A professora de telejornalismo mandou uma dupla de reportagem para me entrevistar. O Jornal do Brasil deu quase uma página inteira sobre o livro. A resenha era elogiosa, mas não descia ao âmago da história. O finzinho da página ficou para uma escritora que lançava seu livro de estreia: Fernanda Young, com Vergonha dos Pés.

Mas agora eu também tinha que lidar com serpentes. Na noite do lançamento, alguns advogados que costumavam colaborar com o meu pai saíram da Argumento para jantar num restaurante próximo, onde decidiram "como dividir as causas do Alfredo". Não gostei de ouvir isso, mas o fato é que eu só estava interessado mesmo em algumas causas principais.

A Record colocou Círculo de Fogo no Brasil inteiro, mas as vendas ficaram abaixo do esperado. Com exceção do JB, nenhum jornal importante deu destaque ao livro. A história se passava nos Estados Unidos e girava em torno de uma vingança perpetrada por um sujeito que, anos antes, fora vítima de uma grave injustiça. O livro batia muito de frente com a visão excessivamente romântica que muitos brasileiros tinham dos Estados Unidos – inclusive eu mesmo, antes da humilhação de 1993.

Àquela altura, eu ainda não sabia de algumas dívidas que o meu pai deixara e de algumas despesas enormes que teríamos de pagar e achava que tinha dinheiro no bolso. Até que foi bom, porque comprei um apartamento em Ipanema que de outra forma eu não compraria e que viria a se valorizar muito nos anos seguintes.

Pela primeira vez, pude decorar um apartamento do meu jeito: todo claro, com sofás macios e aconchegantes e ambientes amplos. No banheiro, coloquei uma banheira com hidromassagem. Era um apartamento ótimo num prédio um tanto ruim, onde toda a parte comum funcionava mal. Mesmo assim, fui em frente.

Entreguei o apartamento alugado na rua Visconde de Pirajá em março e fiquei algumas semanas com a minha mãe, enquanto dava os últimos retoques no apartamento. No dia em que realmente aprontei a mala para me mudar, Puts Cachorro passou velozmente à minha frente e entrou no elevador. Antes que eu entrasse, me encarou firme e começou a latir violentamente, de um jeito que nunca havia feito – nem quando fui à Europa, nem quando embarquei para São Paulo, em busca de um lugar na publicidade.

PUTS! 17 anos e meio ao lado de um engraçadíssimo cachorro-pessoaOnde histórias criam vida. Descubra agora