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Uma semana depois do início catastrófico no Sparvoli, não era qualquer quarta–feira: Era a quarta–feira inteligente dos supermercados Guanabara. Sim, aquele do aniversário.

Reza a lenda em Andaraí que todo mundo tem que pagar mico no Guanabara um dia, para que o mundo siga seu curso normal. Assim, fui eu quem saiu do restaurante passando por cima de Deus e o mundo, no pior horário do ônibus – quando eu tive que prender a respiração, me jogando nas sacolas de feira da Dona Joana enquanto a porta fechava – e passando antes pela loja de embalagens para comprar os sacos de plástico para talheres, que deveria levar no outro expediente. Mas, na sessão de frios, eu o avistei. Tudo valeu a pena.

Maple Syrup mais barato só se for no Canadá eu mesma fazer. Minha boca salivava com a infinidade de receitas. O céu é o limite.

E o pobre, meu amor, é uma desgraça.

Aquele era o meu destino, e quando eu estava a três passos daquela belezinha canadense, um ser humano recheado de laquê para cabelo colocava a única garrafa em sua cestinha.

– A senhora vai mesmo levar? – tentei apelar para a boa educação, meus olhos de desejo passeavam pela embalagem.

– O que é que tu tá de olho na minhas coisas, menina? – ela me espanava com as mãos – não é de hoje que eu vejo isso, já sei bem o povinho do seu tipo! O que é essa sacola aí, hein? Tá me roubando?

Tornou–se uma pequena comoção na sessão de frios, os ventiladores tornando meus cabelos um ninho assustador. Um segurança já tinha chegado, me olhando daquela maldita forma que eu não deveria, mas já estava acostumada. Quando ele estendeu a mão para inspecionar minha sacola de embalagens, eu já estava cansada.

– Isso é um absurdo! – Minhas mãos tremiam – meu senhor, eu acabei de vir do meu trabalho, pelo amor de Deus!

– Olhe a sacola dela! Meu relógio sumiu! – a perua ainda gritava, meus olhos ardiam.

– Que confusione1 é esta? Eu estava vendo, Chechília não roubou ninguém!

Fala sério.

Qual a probabilidade do meu chefe – e crush em potencial, vamos ser francos – Aparecer no Guanabara enquanto eu estava com os cabelos no ar e as bochechas vermelhas? Não tinha tempo para isso, a minha cabeça só processava formas de matar todo mundo na sessão de frios.

– Ninguém vai acusar ela de nada, cadê as câmeras? – outro senhor já se juntava em meu favor

Sicuro, Sicuro2! – Enzo batia palmas, todo barraqueiro.

– Quer saber? Eu não quero passar mais nenhum segundo aqui. – buscava minha sacola, exasperada – A senhora morra você e seu preconceito, eu nem quero mais essa calda ridícula. Querem ver a minha sacola? Então vejam muito bem. – rasguei o pacote, jogando tudo para cima. Mil saquinhos para talheres no ar, formando redemoinhos com os inúmeros ventiladores. Gritaria total no supermercado Guanabara, e eu nunca me senti tão feliz.

Eu estava vingada. E alí, na chuva de plástico, Enzo sorriu para mim.

– Desliguem os ventiladores! – o segurança gritava. Os clientes riam. Nada disso importava.

– Precisa de carona? Para sua casa, eu quero dizer – Enzo escalava pela pilha de sacos que já estavam no chão, observando a catástrofe.

                                                       **

Quando o carro refinado chegou à minha rua, a música do Raça Negra e o cheiro de comida árabe já nos embalava. A viagem de poucos minutos tinha sido estranhamente silenciosa, mas a sugestão de sorriso não saía dos lábios do chef.

– Moro logo ali, em cima daquele bar – Virei para ele, meus cachos esparramados pelo meu rosto.

– Alguém aqui é muito fã do Raça Negra – apontou para dentro do bar, onde havia um enorme pôster tamanho real de toda a banda.

– É o Seu Rami, ele é totalmente maluco. A comida dele é incrível e o pessoal do karaokê é hilário!

– Karaokê? Estamos nos anos 2000? – Ele riu, inclinando–se para olhar mais. O bar do Seu Rami é uma construção antiga e simples, que existe desde que nasci. As mesas de madeira, o karaokê e a comida deliciosa fizeram esse ponto se tornar uma das maiores joias do Rio de Janeiro.

– Não fale mal da minha casa – sorri e pisquei para ele, meu mal humor causado pelo incidente quase desaparecendo.

– Lia, é você? Dona Eugênia já entregou duas reais no buraco, precisamos de alguém descente! – Ouvi Alice em meio a gritaria habitual e decidi que teria que convidá–lo para ficar.

– Está com fome? Nós temos a melhor Shawarma3 de carne do Rio. – Eu queria que ele ficasse. Era terrivelmente errado de todas as maneiras, mas eu queria.

Sono affamato! – Ele sorriu. Se ele desconfiava que eu falava italiano, minha cara vermelha denunciou. Além de significar que uma pessoa está faminta, affamato é usado como gíria para quem quer desesperadamente sexo. Percebendo meu constrangimento, Enzo arregalou os olhos – Não, não, esquece!

Desci do carro, disfarçando o riso. Ele chegou perto da mesa, arregaçando as mangas cheio de sorriso largo.

– Uh Lia, quem é o bonitão? – Dona Eugênia balançou as unhas postiças, piscando.

– A Dona Eugênia já foi vedete do Chacrinha, hoje em dia vende tudo que você imagina aqui pelo bairro – Sussurrei para Enzo, apresentando os meus amigos que estavam na mesa – Seu Paulo é taxista e pai da Alice, faz uns covers do Roberto Carlos para ganhar uma grana.

– Ele é a cara do Roberto Carlos – sussurrou, rindo. Sentia a sua respiração no meu pescoço – e a Alice?

– Ela é da família – disse, simplesmente, apontando com o nariz para a minha melhor amiga de infância. Enzo não quis se prolongar, sentando logo no lugar vago, que era sempre destinado a mim. – Ei!

Per favore, Chechília, buraco corre pelas minhas veias – e piscou, dando as cartas. Dona Eugênia já estava apaixonada.

Folgado.

– Seu Rami! O vizinho falou que se o senhor não desligar o Raça Negra, ele vem aqui – Amanda, minha irmã, entrou correndo gritando a plenos pulmões – mas pode deixar, eu resolvi tudo.

– O que você fez, criatura? – Seu Paulo gritou por cima das cartas.

– Falei que as galinhas dele não iam ver nem o cheiro dos restos de comida do bar, se ele viesse arrumar confusão – E gritou de volta, balançando as mãos. Gritaria era uma parte das regras de habitar o bar do Rami.

– Olha a visita! – sibilei, enquanto dava um tapa em seu braço. Como respeito era o que menos existia naquele lugar, recebi uma língua para fora em resposta.

Amanda olhou para o chef, e o sorriso que recebi de volta me fez perceber que eu estava ferrada. E então ela abriu a boca.

– Quem é você e o que faz no nosso esconderijo secreto?

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1  Confusão

2  Sem dúvida, certamente

3  Carne enrolada em um pão sirio com pasta de alho ou molho de tahine acompanhado com tomates grelhados, salsa picada e batatas fritas. 

Notas da autora:

Amigos! Eu sei, eu sei... estou atrasada. Mas eu tô na Bahia com a minha família louca e tudo é mais difícil! Obrigada por serem tão queridos! <3

OVO FRITOOnde histórias criam vida. Descubra agora