Prólogo

3.8K 520 74
                                    

* Capítulo surpresa.

Nikaule, 2010

O Solo duro que adentrava meus pés, mesmo não os podendo ferir mais do que estavam feridos. E as pedras... Elas não me fariam parar. Eu correria por entre cada rachadura da terra seca e dura, até que meus pés se igualassem a ela, se essa fosse a condição para que dessa vez, somente dessa vez a batalha fosse ganha.

Ao longe avistei o imenso helicóptero que pousava, assim como o homem havia dito, dias atrás. Ele estava certo. Eles cumpriram. Os homens de branco haviam chegado trazendo a cura para Nikaule. Não morreríamos como fora profetizado pela boca maldita do último governador, parei para respirar e olhei para baixo. Que o demônio o guardasse debaixo de sete chaves.

Não. Não podia parar. Nem mesmo para tomar de volta o fôlego que a corrida havia me tomado.

Ao aproximar-me com meu irmão nos braços um dos últimos homens vestidos de homem subia no caminhão. Eles não podiam partir sem mim.

- Não. Esperem. – Eu tinha viajado mais de cinco horas até ali. E a viagem até o acampamento levava em média mais uma hora de caminhada. Mas no veículo seriam poucos minutos.

Mas eles não me ouviram. Eles não me esperaram. O helicóptero fazia demasiadamente muito barulho e minha voz não tinha forças para gritar mais alto.

Desanimada me deixei cair de joelhos e notei que assim como a água que há muito não caia no solo, minhas lágrimas também havia simplesmente desaparecido.

- Não pequeno Enan. Não se vá. – Tentei me levantar, mas a fraqueza não era uma característica que acompanhava somente os menores. Estava com todos na vila. Não sabia o que era comida há dias, ou melhor, há meses. Nos alimentávamos do mínimo possível para que o alimento que chegava até ali desse para todos, inclusive os menores. Mas ao me lembrar dos outros dois pequenos que faleceram em menos de cinco meses na mesma situação, sem falar de minha mãe, eu tirei força e coragem de um lugar que eu também desconhecia e o tomei novamente nos braços e parti. Corri em direção ao sol que castigava Nikaule. Castigava nossa gente e assim, fazia com que o resto de água que eu trazia no corpo evaporasse em forma de suor. E por fim eu vi. Eram as tendas. As tendas do acampamento. Eu estava próxima.

- Um médico, por favor! Médico salva Enan! – Eu corria entre uma cama e outra. E entre as pessoas enfermas os homens e mulheres de branco que ali estavam pareciam mais desnorteados que eu.

Eu tentei um senhor de idade, mas segurava um menino menor que Enan que derramava o sangue do corpo pela boca fazendo um desenho enorme de um círculo vermelho agora no que antes parecia tão claro, a roupa do homem já não parecia tão branca assim.

Uma mulher loira. Ela tentava pegar a veia de uma garotinha e também... Também não pode ajudar Enan.

Enan morreria em meus braços em meio aos homens de branco e nem sequer notariam que estávamos ali. Mais uma vez, era como se fôssemos invisíveis aos olhos de toda a humanidade. Nikaule não existia para o resto da sociedade. Mas como se fosse um milagre eu olhei para frente e algo aconteceu. Um homem. Um homem de olhos azuis, que olhava para mim e Enan. Um médico. Ele não estava atendendo ninguém. Nenhum adulto e nem mesmo uma criança. Estava simplesmente sentado em meio a todo tumulto. Talvez não fosse igual aos homens que estavam ali, mas a roupa era parecida. Seus olhos, agora estavam fixos aos meus e senti que talvez... Engoli as lágrimas que agora tentavam sair e caminhei até ele.

- Medico ajuda Enan? – Juro que tentei não demonstrar fraqueza. Mãe dizia que fraqueza não se demonstra na frente dos homens. Mulher tem que ser sempre forte. Mas não tinha mais força. Esse homem à minha frente era a ultima esperança.

- Não vê que não estou de plantão? – Isso era um sim? Estendi o Enan a ele.

- Enan. Ajuda? – O homem se levantou parecendo bravo e eu o segui. Minhas lágrimas estavam deixando minha visão um pouco sem foco, mas eu via o vulto dele. Então o Enan suspirou e parou. – Enan? Enan? – O desespero tomou conta de mim. Segurei o homem pelo braço. – Ajuda! Ajuda!

- Não posso! Não entende minha língua? Eu não posso ajuda-lo.

- Ajuda Enan? – Caí de joelhos a seus pés. Mas nesse momento eu entendi. O homem não ligava. Não se importava comigo ou com Enan. Na verdade não parecia se importar com ninguém ali. E quando eu pensava que Deus o tinha tocado e ele iria nos ajudar se abaixou e olhou dentro dos meus olhos. Tocou o Enan e disse de uma só vez.

- Veja! – Segurou meu rosto e me fez olhar para o Enan. – Ele se foi! - Olhei em minha volta tentando buscar uma tradução para aquilo. "Ele se foi". Vendo que eu buscava auxilio gesticulou com as mãos como se eu fosse uma idiota. – Acabou! Está morto! Sem vida!

Só me restava fazer o que fiz: "cuspi em sua cara". Eu sabia o que era "Ele se foi". Eu só não queria acreditar que um médico poderia ser tão cruel ao ponto de dizer assim, sem piedade que uma criança de apenas seis anos tinha perdido a vida sem ao menos um pingo de sentimento.

Sentei-me ao chão e cantei o canto das almas que subiam aos céus. Que ele se encontrasse que minha mãe. Que ele se encontrasse com nossos irmãos e com o pai que não chegaram a conhecer. Não somos filhos do mesmo pai. Segundo minha mãe, meu pai havia falecido antes de eu nascer. A mesma história que contava sobre os garotos, mas com o passar do tempo comecei a perceber que ela fazia parte das mulheres que eram abusadas por aqueles homens que vinham vez ou outra. Mas agora minha mente só conseguia ver o rostinho quase seco em meus braços.

- Me desculpe. – Não queria ouvir mais ninguém naquele momento. – Me dê aqui o menino. – Continuei cantando ali no meio da tenda de atendimento. A doença era avassaladora. Não era preciso ter trago esses homens aqui para dizer do que a população estava morrendo, o governo mesmo havia dado o diagnóstico. Malária.

- Vamos, me dê o menino! – Olhei e vi que quem pedia Enan, era outro homem de branco. O miserável que deixara Enan morrer não estava mais ali.

- Saí! Vou leva-lo para casa. Ninguém pode ajudar. Outro disse que Enan se foi. – Se eu pudesse encontra-lo mais uma vez, iria mata-lo, com minhas próprias mãos. Ele iria com Enan. Não. Enan está no céu, e ele iria para o inferno com certeza.

- Pensei que homens de branco fossem bons. – Choraminguei sem forças. Se recusar a atender uma criança. Isso não é do céu. É do inferno. - Homem do mal. Pensei comigo. – Homem do mal! – Repeti em voz alta sem querer.

- Não tinha mais nada o que fazer. Devia ter trago o menino antes. – A voz deste homem era gentil. Mas nada que ele fizesse ou falasse agora poderia trazer o Enan de volta.

Passei por outras pessoas que choravam suas percas, e embora parecesse cruel, esse cenário estava parecendo mais natural que nunca. As pessoas estavam indo, e mais rápido que nunca. E agora estava sozinha. Enterraria o Enan e ajudaria outras pessoas. Faria algo em minha vida para ajudar minha pequena vila. Nosso povo não poderia sumir assim. E não precisamos de homens de branco em meio a nós.


Sob o Sol de Nikaule - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora