Capítulo 09

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Murilo,

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Murilo,

- Você devia me entender! – Ela parou de correr assim que ouviu minha voz. – Perdeu tanta gente em sua vida. Devia saber o que se passa dentro de mim. – Me ouvia, porém não se virou para mim. Estava ofegante pela pressa em se afastar de mim, quando ouviu a brincadeira da Andressa.

- Quero ficar só! - Odiava ficar mimando adulto como se fosse criança, mas a ocasião pedia uma reparação. E não devia ser eu estar ali, ter preciso correr como um maluco atrás de uma garota. Quem devia estar aqui se desculpando por toda intromissão devia ser aquela mulher insuportável, que ofendera a pobre da Becca e seu gesto tão nobre.

Dei a volta em um galho seco que nos separava e me sentei ao seu lado ao tronco caído. Segurei o pingente em minha mão e, pensei que eu não era obrigado a fazer aquilo, mas em consideração a seu gesto de carinho, eu lhe contaria um pouco do que me levará até ali.

- Melinda. – Ela me encarou achando que eu tinha dito o nome dela errado. – Melinda, - mostrei o pingente. – Minha esposa. – Uma sombra percorreu seu olhar, e eu entendi que por mais chata que fosse a Andressa tinha razão, não tinha o direito de iludir a Becca, meu coração ainda não estava livre. E não era por ser ela... Ele não estava livre para ninguém.

- Ela é linda? – Ela não tinha entendido, secou a lágrimas e tentou sorrir. – Becca envergonhada. Pensei... Médico sem família gostaria de ganhar presente.

- Não se envergonhe Becca. Fico feliz que tenha pensado em mim. E sim! Melinda era muito bonita. Ela se foi! Assim como Enan. – A simples menção do nome do irmão foi o suficiente para que ela se levantasse e sentasse na outra extremidade do tronco.

- Você não ajudou Enan. – Quantas vezes eu teria que explicar que não podia.

- Becca... As pessoas se vão.

- E os médicos ajudam. – Ela voltou-se para mim, com raiva no olhar. Em outra hora eu explicaria a situação.

- Nem sempre os médicos ajudam Becca.

- Médico não ajudou? – Ela tocou no pingente.

- Não. Médico não ajudou Melinda. – Enquanto eu contava a ela e ouvia ao longe um canto triste como se pudessem traduzir a dor que ainda comprimia tanto minha alma, fui revivendo cada momento. Desde o nosso primeiro encontro, até o ultimo. O último seria no dia mais feliz de nossas vidas. Dia de nossa realização como família, como casal.

O Sonho da Melinda era ser mãe, e lógico meu sonho também, e por cinco anos ansiamos por aquele momento. E duas semanas antes, ela tinha reclamado de algumas dores, pedi que ela fosse ao seu médico e ele disse que estava tudo bem. A única anormalidade era que ela estava sentindo uma umidade vaginal, mas esse detalhe eu só soube depois, durante a investigação, mas o médico não escondeu que ela tinha dito a ele. E assim, quando as dores vieram, e a febre, o incomodo, dias antes da data do nascimento estar marcado, descobrimos que todo líquido amniótico havia escapado, sem que ela percebesse. Por isso, tanta umidade vaginal.

A gente nunca tinha passado por isso, pais de primeira viagem acreditam em tudo o que o obstetra diz. O que é inaceitável é que eu sou médico, e devia ter desconfiado que algo não estivesse bem.

- Ele tinha que ter investigado Becca. O obstetra dela tinha que ter se interessado mais pelos relatos de sua paciente. – Não adiantava eu explicar para ela que a bolsa rota facilita a penetração de bactérias que são a causa de infecções no feto e consequentemente na mamãe, ou pode ser o contrário. - Quando ele entrou com o tratamento era tarde demais.

- E o bebê? – Eu nem queria tocar no assunto. Aquilo doía meu coração.

- Ela... Isabely. Ela nasceu paralisada, a equipe médica conseguiu reanimá-la. Foi encaminhada para a UTI Neonatal, mas não resistiu e também se foi.

Minhas lágrimas, não eram as mesmas. A dor não era a mesma de quando tomei minha filha nos braços, sem vida. Mas ainda estava ali, as lágrimas, a dor, a ferida e a revolta.

Nos dias que se seguiram eu procurei pelo obstetra e minha vontade era fazer justiça com minhas próprias mãos, mas não o encontrei em parte alguma. O Covarde havia se escondido tão bem, que não devia estar ao menos vendo o sol nascer ou morrer.

Morrer... Eu busquei pela morte durante meses. Queria estar com Melinda e com Isabely. A simples imagem dos dois corpos ali, no velório, frios, sem vida, um ao lado do outro, era prova de que eu precisava me encontrar com elas.

- Sinto muito. – Senti a mão da Becca sobre a minha. Era a primeira vez que sabia que alguém me olhava com solidariedade de quem sabe o que sinto por ter passado por perdas, e não com olhar de pena. Ela voltou a sentar-se.

Como se de repente passasse a confiar em mim, Becca me contou sobre sua mãe, a doença, e de como ela teve que assumir os irmãos com tão pouca idade. Relatou sobre a partida de cada um, e as dores que se instalara em seu coração. E por fim, contou sobre o destino cruel que deixara Shaira ainda criança com um corpo por três dias em casa. O corpo da mãe, a única família de Shaira. Agora eu entendia o amor e a amizade entre Becca e Shaira. Era mais que gratidão o sentimento que as envolvia. E por alguns instantes nós choramos juntos ali, sob a lua de Nikaule.

E quanto às palavras que eu havia gritado dias atrás ao Thiago, eu percebi que estava enganado. Eu ainda não estava de todo livre. Ainda tinha assuntos do passado para resolver.

Sem perceber, a lua começou a se esconder, e do outro lado uma cor amarelada tomava conta do céu.

- Shaira deve estar preocupada com Becca. Preciso ir. – Ela se levantou, e olhou para o amarelo que agora tomava conta do céu. – Há muito não via um nascer do sol tão lindo em Nikaule. Como se fosse uma nova oportunidade de recomeçar. Ela se afastava quando me lembrei do presente.

- Becca. – Quando se virou me viu de mão estendida. Eu queria o artesanato, e quando ela estendeu a mão ainda relutante, eu logo tratei de colocar no pescoço junto ao de Melinda. Mas ela se aproximou e tirou no mesmo instante, dobrando o mesmo e colocando no bolso de minha camisa. – Médico ainda não preparado para presente. - E ficando à ponta dos pés beijou minha boca. – Um dia quem sabe! – Um raio de luz bateu sobre seu rosto e foi a primeira vez que eu me deparei com um sentimento chamado esperança, quando o primeiro raio de sol tocou meu rosto, iluminando a minha escuridão.

- Quem sabe Becca. – Ela se foi e eu fiquei ali, vendo o sol despontar. Deixando que seus raios tocassem não só meu corpo como também minha alma.


Sob o Sol de Nikaule - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora