Cap. 1

290 16 0
                                    

Havia quem tivesse a coragem de visitar as redondezas do lago de Xochimilco por algumas horas, havia até quem se atrevesse a passar uma ou duas noites a alguns quilómetros deste mesmo e havia Enoch, um adolescente que se escondia do mundo exterior na casa de Julián Santana Barrera.

E se Julián, com medo do suposto espírito da menina afogada que assombrava o local, passava o seu dia a pendurar bonecas que encontrava, ou que lhe eram oferecidas, perto do lago, Enoch passava o seu dia a tirá-las das árvores e de todos os outros sítios onde Julían as tinha colocado com tanto medo e pesar.

Enoch foi lá parar por curiosidade e acabou por encontrar um porto seguro para a sua alma sofrida. No máximo, um visitante ficava lá dois/três dias e provavelmente nunca mais lá voltava a pôr os pés, o que para Enoch significava que ninguém o conhecia, ninguém questionava o porquê de ele lá estar todos os dias, ninguém se importava com ele e com a sua estranha forma de "entretenimento".

No início, Enoch tirava algumas bonecas por dia e animava-as com os corações de animais mortos que iam aparecendo nos arredores do lago e, depois de se cansar delas, queimava-as na parte traseira daquela casa sinistra. Com o tempo apercebeu-se que não podia queimar todas as bonecas pois ficaria rapidamente sem nenhuma, então começou a reutilizá-las e a deixa-las na cave.

O seu passatempo preferido era criar as suas próprias bonecas e pó-las a lutar com as bonecas desmembradas e envelhecidas, por mais que lhe doesse, observar aqueles objetos a ganharem vida e a guerrearem entre si, dava-lhe entusiasmo, quando mais ninguém o fazia.

Foi numa tarde de inverno, em que Enoch se encontrava na cave cantarolando e assobiando uma das suas músicas habituais ao mesmo tempo que trabalhava o barro, que algo lhe chamou à atenção... Estava uma rapariga que aparentava a "sua idade" a acenar-lhe da janela. Ele ignorou-a e voltou ao trabalho, mas ela continuava lá, sendo que começou também a dar pequenas batidinhas no vidro. Ele tornou a olhar e ela sorriu novamente de orelha a orelha. Enoch pensou ignorar mais uma vez, mas sabia que ela não sairia dali, portanto levantou-se e com um bufo abriu a porta da cave e olhou-a de cima a baixo, sem dizer nada.

-Olá!- disse ela, sem obter resposta.- Vives aqui?

-Como é que descobriste o caminho para aqui?

-Ahahaha, não respondas a uma pergunta com outra.- retorquiu ela, entrando para a cave.

Aquela entrada forçada irritou-o mais do que a própria rapariga teimosa e de sorriso fácil.

-Oh meu Deus.-disse admirada.- És escultor?

-Sim, sim. Agora adeus.- disse rapidamente Enoch pegando-lhe num braço e dirigindo-a à porta, sem lhe dar tempo de reparar nos corações e outros orgãos expostos em recipientes de vidro e conservados em formol.

Ele saíu também, fechando a porta atrás deles. 

-Volto a perguntar, como é que descobriste o caminho para aqui?

-Podias sorrir um bocadinho... Aposto que ficas mais bonito quando sorris.- ele não respondeu, portanto ela decidiu contar tudo.- Eu andava à procura de uma entrada na casa e, vi aquela fissura na madeira lá encima, entrei e cheguei aqui.

-Porque é que quererias entrar aqui?

-Eu não tenho onde ficar.- olhou-o nos olhos.

Enoch pensou naquela resposta e relembrou-se de ele próprio, quando tinha ido para lá:

-Fica com a tua família.

-Preferia morrer.

Continuavam a olhar-se nos olhos:

-Há outra entrada para esta casa, eu levo-te lá, não há vizinhos mas peço-te que não faças barulho.- disse começando a dirigir-se para o piso onde a levava.- Vais ficar muito tempo?

-Nem sei.-respondeu seguindo-o.

Entraram pela porta principal e a rapariga começou a tossir mal esta se abriu. O cheiro nauseabundo a humidade e a madeira podre enchia-lhe os pulmões.

-Se quiseres água, vai buscar ao lago, se quiseres luz, tens aí lamparinas e fósforos. Mas se fosse a ti não tinha nada aceso durante a noite, andam ai fantasmas.- soltou um sorriso sarcástico.

-Se andarem, eu saberei.- disse sacudindo levemente o pó de uma cadeira e tirando a sua canon da mochila.- Eu sou a Giulia Darte.

-Sou o Enoch O'Connor.

-Felizmente não usas só roupas de velho, o teu nome também é.- riu.

-Já estás a ficar mais irritante novamente.- replicou semicerrando os olhos.- Felizmente não pareces só estúpida, também o és, principalmente com essa cempasúchil no cabelo.

-Prefiro chamar-lhe cravo de defunto.

Ele virou as costas dirigindo-se à saída e ela completou a frase dizendo:

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Ele virou as costas dirigindo-se à saída e ela completou a frase dizendo:

-Falando em defuntos, eu vi os corações.

A ilha das bonecas mortasOnde histórias criam vida. Descubra agora