A ilha das bonecas mortas

Cap. 6

Pela primeira  vez, Giulia teve a hipótese de reparar nos pequenos detalhes daquela cave poeirenta. A estante de madeira que sustentava os diversos recipientes estava prestes a ruir e o cheiro a  decomposição começava a dar-lhe voltas ao estômago.

-Estás pronta?- perguntou-lhe Enoch.

Ela acenou e sentou-se no canto daquela divisão degradada, longe do sítio onde o conflito se iria passar e começou a observá-lo atentamente. O rapaz pegou em duas bonecas e abriu-lhe um espaço no peito. Pegou em dois pequenos frascos e retirou de lá corações pequenos, que se assemelhavam a corações de galinha, com uma grande pinça, ele colocou os corações nos buracos abertos no meio do peito das bonecas e estas foram-se erguendo devagar. 

Giulia estava aterrorizada com o que tinha acabado de acontecer:

-O que é que fizeste??

-Ainda não chegou à parte divertida.-parou.-Queres ver a parte divertida?

Não conseguindo uma resposta vocalizada, Enoch contentou-se com um levantar de sobrancelhas e sussurrou algo às bonecas que, mal isto aconteceu, começaram a atacar-se uma à outra de forma extrema.

-Qual queres que ganhe?

Giulia observava perplexa aquela cena demoníaca. Ela sabia que o que Enoch escondia não podia ser normal, mas nunca achou que fosse assim peculiar. Por fim, respondeu:

-A mais pequena.

Enoch olhou-a e sorriu, vendo que, pela primeira vez, a regra do mais forte seria quebrada nos seus combates e ainda por cima, por vontade de uma rapariga que ele primeiramente odiava.

-A mais pequena será, então.

E assim foi. A vencedora desfaleceu passados uns minutos, e foi isto que fez com que Giulia se sentisse na obrigação de tirar conclusões. Pegou na cadeira e sentou-se ao pé dele, que limpava e arrumava o "coliseu". Mas antes de conseguir tirar as suas dúvidas, foi primeiro questionada por ele:

-Já passou o choque?

-Nem sei. Não estava à espera que fosse isso.- parou.- Posso perguntar-te algumas coisas?

Enoch acenou afirmando.

-Como é que descobriste que eras capaz de fazer isto?

-Sabes quando te sentes incompleto? Sabes que falta algo e não consegues perceber o que é? Foi assim que descobri, eu queria saber o que era. Queria saber o que me chamava tanto à atenção ao compartimento onde os meus pais tratavam dos cadáveres. Numa noite fui lá e experimentei tudo o que pude com aquele pobre cadáver, pus-lhe um coração e fi-lo dançar, falar,... Senti-me completo pela primeira vez. No início eles não se mantinham acordados por muito tempo, mas quanto mais tempo eu passava a fazê-lo mais duração eles tinham e aí eu percebi que quanta mais energia eu gastava, mais eu me sentia completo, mais batalhas eu podia fazer. Os meus pais notavam o meu cansaço e os barulhos estranhos durante a noite, até que um dia eles viram tudo. 

-E depois o que aconteceu?

-Queriam mandar-me para uma casa de peculiares, disseram que eu não podia ficar alí, que se alguém descobrisse eu me ia dar mal. Disseram que me queriam proteger, que não é suposto um adolescente brincar com cadáveres e trazé-los à vida e mandaram-me para a tal casa. Mas eu fugi. Não gostava de ninguém lá, fiquei lá durante uns cinquenta anos e acreditei-me na treta que eles contavam. 

-Que era?

-Se saisse do loop envelheceria todos os anos que passei dentro dele e olha para mim! Tenho 66 anos e estou assim, um ótimo modelo!

-Tens 66 anos?! O quê?

-Teria de te explicar o que é um loop primeiro. Resumindo, é um dia do passado que se repete todos os dias, o que faz com que os peculiares que estejam lá dentro fiquem com a sua idade suspensa. Entendes? Disseram-nos que teriamos 3/4 dias de vida ao sair de um se não entrássemos noutro.

-Há quantos dias estás aqui?

-Há poucos mais que tu. 

Ela olhou-o abismada:

-Enoch! E se morreres?!

-Não morro nada, já tinha morrido se fosse assim. Posso ir lá para cima?

-Não precisas de perguntar. Vens e pronto.

Subiram e Giulia acabou por adormecer nos braços de Enoch ao som das histórias dos peculiares que ele contava, que lhe pareceriam inacreditáveis se ela não tivesse visto o que viu.