Cap.2

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Enoch parou e virou levemente a cara, olhando-a de lado. Pensou em comentar a sua afirmação, mas preferiu ficar calado uns segundos, dando tempo suficiente para que a adolescente de família quebrada visse e guardasse na sua memória os traços mais salientes do perfil do seu rosto: a bochecha cravada e o nariz de ponta redonda. Ela sorriu e, mal acordou dos seus pensamentos, a porta já estava fechada e ele não se encontrava por perto.
Giulia abriu a janela de onde brotavam os últimos raios de sol do dia e decidiu dar uma vista de olhos pela casa. Admirava-se como aquela ainda se mantinha em pé, sendo que lascas de tinta amarelada saltavam pelas paredes esburacadas e alguns suportes feitos de madeira envelhecida já estavam partidos.
O sofá que se encontrava na sala, que servia também de cozinha, foi o lugar escolhido por ela para passar a noite, pois estava em melhor estado que a única cama do único quarto. Bebeu o seu chá de camomila, recentemente feito numa chaleira enferrujada no exterior que tinha achado, enquanto vasculhava e tratava de algumas fotos no seu portátil.
Enoch acordou sobressaltado ao início da manhã e decidiu não tentar dormir outra vez, a ideia de ter alguém a "morar" no andar de cima, de já não ser o único que vagueava sem medo por ali e de alguém saber da sua coleção de corações, tornava-o bastante susceptível a insónias. Levantou-se e foi dar uma volta no barco antigo que repousava quieto na água, algo que lhe refrescava o ar nos seus pulmões e também os seus pensamentos.
Quando voltou, tinha encima da mesa um chá qualquer e um bilhete "Ainda não me vou embora, não te livras de mim tão cedo. Fui à cidade fazer compras e, provavelmente, vou aproveitar e tirar algumas fotos. À tarde vou limpar um pouco aquilo lá cima..." virou o papel "se quiseres, podes vir ajudar. O chá não tem veneno, é de cidreira e limão, ajuda a libertar stress... Obrigado por me deixares ficar aqui. Giulia".
-Eu não acredito que ela volt- a sua frase resmungona foi interrompida pelo barulho de outro papel a ser pisado, levantou o pé e apanhando o recado, leu em voz alta.-"Não passei daqui!".
Bufou, e murmurou para si mesmo quanto é que a rapariga era intrometida, trazendo o chá para o lado da sua prateleira e começando a trabalhar numas bonecas com o intuito de fazer uma luta e divertir-se um pouco.
Por volta das três da tarde, quando Enoch descansava, sentiu umas gotas de água a caírem no seu ombro e, indignado, levantou-se e dirigiu-se o mais rápido que pode para o andar onde estava a rapariga.
A porta estava encostada, o que facilitou a entrada brusca do Enoch:
-EI!-gritou.
Ela virou-se e tirou os fones dos ouvidos, pousando a esfregona no balde:
-Vieste ajudar?
-Mas tu estás a brincar comigo? Estou com cara de quem quer ajudar? Tu não usas o cérebro? Estás a fazer com que a água caia toda lá para baixo!
Ela olhou-o com cara de desentendida:
-A casa é velha, mas também não é assim tanto para que a água escorra "toda". Além disso até estou a lavar com pouquinha!
-Tu só podes estar a brincar comigo!- repetiu- Vais ter cuidado ou vou ter de te expulsar?
Ela riu:
-Não me digas que a casa é tua...-perante o seu silêncio, ela continuou.- Quem cala, consente. Queres que vá lá baixo ver se escorreu assim tanta água?
-Não!- precipitou-se.
-Então fica aqui e ajuda-me! Se formos dois, fazemos melhor e mais rápido.
Demorou a formular uma resposta mas, por fim, respondeu:
-Tudo bem.
-Limpa os armários, se faz favor. Está aí um saco para deitares a comida e afins que estão aí desde o século passado. Vou tentar limpar isto com menos água então...
Enquanto esfregava o chão, Giulia decidiu perguntar:
-Como vieste aqui parar?
-Não quero falar sobre isso, principalmente contigo.
-Respeito isso. Então... Humm... De onde és?
-Londres.
-E... Qual é a tua comida preferida?-sorriu.
Ele olhou-a e disse:
-A sério que estamos a fazer isto?
-Sim!-arregalou os olhos- Qual é?
-Sei lá.-pegou num saco de compras- Também é para arrumar isto?
Ela acenou confirmadamente:
-Tu não estás a tornar isto mais fácil... Eu sei que não tenho o direito de vir para aqui e invadir o "teu" espaço, mas eu estou a tentar tornar isto o menos estranho possível. Podias fazer isso também... Tentar...

A ilha das bonecas mortasOnde histórias criam vida. Descubra agora