Para deixar bem claro: se mudar era um saco. Além de ter que empacotar todas as suas coisas, arrumar os cômodos para futuros compradores — a pedido de minha mãe —, ter que dizer adeus para todos os seus amigos mais próximos e viajar por horas de Wichita, no Kansas, até Nova Iorque era uma das experiências mais cansativas que se pode vivenciar. Foram mais de vinte horas em um carro e Deus, que viagem mais longa! A única coisa que fiz ao chegar na casa nova foi ir correndo para um dos quartos, tirar parcialmente o pó do lençol — tenho um sério caso de rinite alérgica que me deixa doente por dias até passar — e desmaiar de cansaço, considerando que eu nem tinha dirigido horas e horas seguidas como meu padrasto, Jim. Imaginei que com meu irmão e minha mãe não teria sido muito diferente. Mal notei qual dos quartos eu havia entrado e, por assim dizer, "tomado posse", mas admito que fiquei bem feliz ao perceber que era uma suíte com janelas para a rua.
Eu pretendia checar as horas se a falta de um celular ou um relógio não me impedisse. Sim, eu era um dos únicos seres humanos existentes que não possuía um celular. Minha mãe tinha uma regra restrita que me proibia de ter qualquer tipo de eletrônico, fosse portátil ou não. A questão era que Eloise, no caso minha mãe, me negava tal privilégio sem qualquer explicação plausível, me dizendo que era uma condição inegociável e que eu devia apenas aceitá-la. Era extremamente chato ver os outros lhe perguntarem o seu número e você ter que explicar que não tinha nem mesmo um celular. Ah, claro, sem comentar que minha mãe me repreendia toda a vez que eu reclamava sobre a falta de um celular: "Nós temos um telefone fixo pare de reclamar, Spencer!" ou "Spencer, você não é todo mundo", além de outras várias frases que ela usava contra os meus argumentos. Tirando isso, Eloise era uma excelente mãe além de ser bem liberal o que era, de fato, ótimo.
Eu até que levava uma vida tranquila, claro, desconsiderando muitas partes da minha vida que não poderiam se encaixar neste quesito, começando pelo fato de que eu nunca conheci meu pai e nunca tive notícias dele. Nós nos mudávamos o tempo todo, e só nos últimos cinco anos eu tinha morado em seis estados diferentes. Nunca ficávamos muito tempo; o nosso recorde até agora tinha sido onze meses em Sacramento, Califórnia. Eu tinha dois irmãos, uma mais nova e um mais velho, apesar de que Marlee morava com nossos avós desde os cinco anos, então eu a via bem raramente. Às vezes sentia falta dela, porém mamãe sempre deixava que conversássemos por uma hora e meia pelo menos uma vez por semana. Já Henry, meu irmão mais velho, tinha seus dezoito anos, e havia conseguido uma bolsa integral no seu tão sonhado curso de Ciências Biológicas — é, ele sempre adorou essa área de ciências e mais.
O problema era: morávamos no Kansas fazia alguns meses e sua bolsa era para uma faculdade em Nova Iorque. E então, lá estava eu, na capital do estado de mesmo nome, tendo que reconstruir toda a minha vida social — de novo. Obviamente minha mãe ficou meio relutante a se mudar, mas Jim fez com ela mudasse de ideia. Eu tinha a forte sensação de que o mundo estava contra mim. No final, mesmo que eu tenha insistido que não queria ir, eles não me deram muita escolha senão ir com eles. E apesar de eu estar levemente ressentida com meu padrasto, ele era um sujeito legal. Jim Kekoa era um havaiano alto e moreno, tinha várias tatuagens muito legais e era impossível não gostar dele. Os momentos que passávamos juntos eram divertidos e sinceros, e eu gostava dele — ele fazia muito bem à minha mãe, então eu me sentia quase que na obrigação de gostar da sua companhia.
E de qualquer forma, éramos uma família com uma qualidade de vida boa e acho que podia afirmar que éramos felizes também; não o tempo todo, claro, mas nós tentávamos. Mas apesar de sermos muito unidos, eu tendia a preferir a companhia do meu irmão, principalmente porque cresci grudada nele e era muito difícil me imaginar longe dele ou sem ele.
Ah, sim, esqueci de contar aquela história. Bem, eu, até meus oito ou sete anos, acreditava fielmente que Jim era meu pai e não havia qualquer lugar para dúvidas. Ele sempre me acompanhou em eventos de Dia dos Pais e apresentações da escola, sempre esteve ali por mim. Isso tudo antes de ouvir minha mãe e ele conversando sobre eu e, olha que legal, meu pai. Eu fiquei confusa, mas continuei escutando até eu entender que Jim nunca fora o meu pai, ele era meramente o meu padrasto. Naquele momento, eu considerei seriamente fugir de casa. Foram oito anos da minha vida achando que eu tinha uma família completa, só para descobrir que na realidade eu nasci de um caso com um cara que sumiu logo depois de saber que minha mãe estava grávida. Atualmente as coisas já estavam resolvidas, e mesmo que ainda me doesse muito, eu não sentia raiva nem ressentia minha mãe por isso, afinal, fazer o quê?
Mais tarde, minha mãe acabou me contando sobre meu pai e sobre a única visita que ele já me fez quando eu ainda era bebê, mas eu não lembrava de nada além de uma sensação calorosa e olhos azuis tempestuosos que Eloise disse serem iguais aos meus.
Aliás, meu nome é Spencer Van Bloom e eu estava perto de completar os meus humildes catorze anos — faltava só três meses e pouco para o meu aniversário. Era oficialmente diagnosticada com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) e dislexia, além de necessitar o uso de óculos de leitura com frequência, por conta do meu hábito de leitura. E eu podia lhe confiar que ter treze anos não era lá muito legal, por mais que nunca tenha gostado daquela coisa toda de crises insignificantes de adolescente, coração partido, meninos e glitter cor de rosa. Sinceramente, eu preferia muito mais perder meu tempo revendo As Crônicas de Nárnia ou relendo O Senhor dos Anéis do que ler uma revista de alguma editora famosa voltada ao público juvenil. E cá entre nós, todo mundo sabia que astrologia e aqueles testes bobos eram só um papinho furado mais para entreter do que te ajudar.
[...]
Eu queria ter dormido mais, mas meio que a minha mãe discutindo com o meu irmão espantou todo o sono que eu tinha e isso me deixou bem chateada. Sentei na cama e me espreguicei, escutando uns poucos estalos que meus ossos fizeram, e logo notei as caixas com o meu nome grifado com um marcador preto — em uma letra bem feia, aliás — postas ao lado da porta do quarto. Me virei na cama, colocando os pés no chão apenas para bocejar, deixando bem explícito que eu havia acabado de acordar. Segui até o banheiro, mesmo sem realmente estar com vontade de usá-lo, e encarei meu reflexo no espelho sujo que ocupava o espaço acima da pia. Talvez tentasse limpá-lo mais tarde, se eu me lembrasse.
Meus cabelos eram de um preto nada incomum e estavam cortados na altura dos meus ombros, o que me lembrava que eles precisavam urgentemente de um corte, enfeitados com os leves cachinhos que se formavam toda vez que eu os deixava secar naturalmente. Incrivelmente não vi olheiras muito notáveis abaixo de meus olhos e, por sorte, meus lábios estavam só um pouco rachados por conta do clima e da baixa umidade que não ajudavam em nada a minha vida. Meu rosto, com bochechas meio cheiinhas, me deixava com uma cara mais infantil do que eu desejava e eu odiava isso, porque ninguém nunca acertava a minha idade. Eu aparentava ser mais uma criança do que uma adolescente de fato, e isso de alguma forma me irritava.
Fiz uma careta para o eu refletido no espelho quando percebi o emaranhado de fios no topo da minha cabeça. Tentei inutilmente arrumá-lo, mas acabei desistindo e enfim decidi descer para térreo a fim de encontrar algo para comer. Ao invés disso, encontrei ninguém menos que meu irmão, surpreendentemente, lavando a louça enquanto cantava num sussurro uma música qualquer de alguma banda que eu não conhecia. Henry tinha uma voz gostosa de ouvir, mas era tímido demais para cantar em voz alta ou na frente de outras pessoas. Rindo baixinho para não chamar atenção, me aproximei devagar, pronta para assustá-lo, e então gritei direito em seu ouvido. Ele se assustou e quase derrubou a xícara na pia, se virando para mim com uma careta irritada.
— Não me assusta assim, Spence. — disse Henry e eu não pude evitar soltar uma risada.
— Devia ter visto a sua cara.
Peguei um pote com frutas sortidas na geladeira e o abri, comendo alguns morangos que pareciam perfeitamente deliciosos enquanto observava Henry terminar de lavar a louça e secar as mãos.
— O que a mamãe te ofereceu pra você lavar a louça?
Ele suspirou, cansado.
— Alguns trocados.
— Bem que você podia me levar comer alguma coisa, não é? — falei, fazendo a expressão mais inocente possível, esperando que meu charme surtisse algum efeito nele, o que geralmente funcionava.
Ele suspirou outra vez e me encarou por alguns segundos.
— Te dou dez minutos pra se trocar, se demorar mais que isso, eu vou sozinho.
Sorri, extremamente feliz, e depositei um beijo em sua bochecha antes de sair correndo para o meu quarto. Como era bom ser a irmã mais nova.
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a tempestade de ouro ━ hdo
FanficSPENCER VAN BLOOM É AMALDIÇOADA. Ou pelo menos, foi o que lhe disseram. Em sua primeira vida, na Grécia Antiga, ao confrontar os deuses do Olimpo, ela foi condenada a servi-los até o dia que sua alma deixasse de existir ou até que eles a dispensasse...