⠀ ㅤ capítulo doze.

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Conforme íamos nos afastando cada vez mais de Nova Iorque, seguindo em direção a Long Island, mais ansiosa e contrariada eu me sentia. Após escaparmos do ataque do que Alex me disse serem fúrias, e me fazendo jurar nunca falar o nome delas em vão, Henry dirigiu apressadamente até estarmos fora da cidade e, segundo ele, provavelmente fora do alcance delas. Levei algum tempo, mas depois de respirar bem fundo consegui lentamente me acalmar. Luke teve grande participação nisso ao ficar conversando comigo sobre diversas coisas para me distrair por boa parte do trajeto. Quando fui perceber o que ele estava fazendo, as minhas mãos já não tremiam mais e eu enfim era capaz de formar um pensamento claro e conciso. Porém, assim que o peso do que aconteceu recaiu sobre mim, me senti péssima; não fiz literalmente nada além de tremer feito uma idiota e olhar enquanto meu irmão e meu amigo arriscavam suas vidas para me proteger.

E para melhorar a situação, minha mãe estava desaparecida e eu não sabia nem se ela estava viva. Me encolhi contra a janela do carro, a culpa me corroendo gradualmente por dentro, olhando em silêncio para a mínima paisagem que mudava dos prédios para as árvores que cresciam ali. Era provavelmente uma vista muito bonita durante o dia, mas eu não me sentia bem o bastante para apreciar qualquer coisa naquele momento.

— Estamos quase chegando. — Henry falou, para ninguém em especial.

Observando pelo vidro embaçado da janela, notei o bosque ficar mais denso ao nos aproximarmos de Long Island e logo uma leve chuva começou a cair, o barulho familiar da chuva batendo contra o exterior do carro me ajudando a relaxar. O conjunto de árvores formavam uma vasta paleta de diferentes tons de verde, mas mesmo forçando a vista, era difícil discernir muita coisa em meio ao breu e à chuva. Avançamos por alguns quilômetros até que Alex de repente pareceu resetar e se virou para olhar para a estrada atrás de nós, tão pálido que eu achei que ele poderia desmaiar a qualquer momento no banco.

— Alex?

— Tem alguma coisa errada. Estou sentindo um cheiro estranho, quase como se fosse de um...

Bang! Bang! Bang! Um barulho que parecia a caminhada mais bruta que eu já ouvira na vida soou em algum lugar atrás de nós e em menos de cinco segundos, algo pesado e grande pulou no capô do carro, fazendo o veículo quase ceder diante o peso da criatura. A frente afundou e por um momento tive a terrível sensação de que iríamos capotar. O pior era que eu não conseguia ver o que era nem se ainda estávamos na estrada ou não. Henry girou o volante violentamente com o susto e eu fui jogada em cima de Luke na curva, salva de bater contra o vidro pelo cinto de segurança. Algo pressionou contra a minha perna e eu ofeguei; a espada de bronze que Luke usou estava a milímetros de me causar um machucado grave.

A massa escura escorregou de cima do carro com mais facilidade do que eu esperava e foi somente ao ver os respingos da chuva que eu lembrei da tempestade que nos açoitava — agradeci mentalmente pelo mau tempo apesar do profundo estado de confusão e pânico em que eu me encontrava. Em uma tentativa de se segurar, ela enterrou as garras capazes de rasgar o mais espesso dos metais ao meio no capô, mas logo sumiu quando o veículo girou e guinou para a direita, fazendo-a se soltar. A pista estava molhada pela chuva quase torrencial que caía e o carro derrapou, rodando várias vezes até batermos de lado contra uma árvore na beira da estrada. O airbag amorteceu o impacto de Henry e Alex, mas eu não tive tanta sorte assim.

Minha cabeça bateu contra o banco da frente com tanta força que eu fiquei tonta com a dor. O cinto de segurança tinha evitado que eu saísse voando em direção a árvore, mas não tinha sido capaz de me proteger dos outros danos causados ao se bater o carro. Eu tinha dificuldade para enxergar com clareza e ao respirar, sentia uma dor latejante na região na qual o cinto havia me prendido, além dos pedaços de vidro quebrado da janela que haviam caído sobre Luke e eu. No entanto, o meu alívio de estar viva e sem qualquer ferimento grave não durou muito. A criatura que havia caído durante o acidente agora se aproximava com um olhar feroz, que eu só consegui identificar porque os faróis do carro a iluminavam de tal maneira que ela parecia ainda maior em meio a escuridão e a chuva. Ela soltou um rugido que me fez arrepiar da cabeça aos pés. Com a luz que o banhava, consegui finalmente ter uma visão clara dele. Desejei poder apagar a imagem da minha cabeça no momento seguinte.

O corpo era o de um leão — isso se eles normalmente tivessem o tamanho de um cavalo de corrida — com asas de morcego ainda maiores e uma cauda de escorpião, porém o mais assustador de tudo era que o seu rosto era humano, ou pelo menos lembrava muito um. E aquilo parecia tão estranho, tão fora de lugar, que eu me arrependi profundamente de não ter desviado o olhar antes. Olhando a criatura pelo o que pareceu uma eternidade, ele me trazia uma vaga sensação de familiaridade, como se eu já tivesse o visto antes. O que era uma possibilidade, já que eu tinha lido muitos anos atrás um livro sobre mitologias, mas ainda assim parecia que eu o conhecia de vidas atrás. Entretanto, o desespero logo me fez despertar quando percebi que ele caminhava exatamente em nossa direção. Com o nervosismo tomando conta, tentei soltar o cinto, mas minhas mãos estavam muito trêmulas e a minha visão turva dificultava e muito o processo de achar a fivela e soltá-la.

Percebi tarde demais que o cinto estava preso e isso apenas serviu para aumentar o meu pânico. Em um breve momento de lucidez, lembrei da espada de bronze presa entre a minha perna e a de Luke e consegui tirá-la dali ao fazer um esforço para mover o meu peso. A lâmina era longa e curvada nos lados, com a ponta mais larga que a base, e ela brilhava como se produzisse uma luz própria. Devia ter pouco mais de 70 centímetros de comprimento, desde a ponta até o pomo da espada. O punho era revestido com tiras de couro marrom, provavelmente para ser mais confortável de manusear. Era claramente uma lâmina grega. Não tinha a menor ideia como eu sabia tanto sobre espadas e suas características, mas demorei alguns segundos admirando a espada antes que eu notasse que estava perdendo tempo. O leão-morcego-escorpião estava a apenas 500 metros de nós e parecia não ter pressa alguma para nos matar.

Com a lâmina posicionada contra o interior do cinto, empurrei a espada e o cortei com facilidade. Forcei a porta ao meu lado e enfim consegui abri-la, saltando para fora do carro com uma espada de bronze nas mãos e meu irmão e amigos atrás de mim — um deles desacordado, outro ainda confuso e um preso pela lataria no banco da frente. Ao me deparar com a criatura frente a frente, pensei em como eu era estúpida em achar que poderia vencer aquela coisa sozinha, especialmente quando o meu conhecimento de esgrima se resumia a dois anos e meio em que pratiquei o esporte. Eu claramente não tinha a menor chance contra aquele leão monstruoso, mas algo dentro de mim me dizia que estaria tudo bem, eu só precisava respirar fundo e me concentrar. E assim o fiz, com certa relutância, até que uma calma fria se apossou de mim, como se eu tivesse feito aquilo diversas vezes antes.

Eu não era mais eu mesma, se isso fazia algum sentido. Eu sabia que aquilo não me pertencia, sabia que era algo que estava dentro de mim e que tinha quase que uma vontade própria, mas não era eu que segurava a espada com tanta confiança que eu comecei a acreditar que talvez saísse viva daquele combate. Não, era algo totalmente diferente. Algo antigo e poderoso que eu não conseguia lutar contra o controle que exercia em mim. Como se meu corpo tivesse vida própria, me arrumei em uma posição de ataque e meus dedos apertaram com força o punho da espada. E sem qualquer resquício da hesitação anterior, eu ataquei.

a tempestade de ouro ━ hdoOnde histórias criam vida. Descubra agora