0.3 | a volta dos que não foram

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Inverno, 2025

Argos, procedente do nome, vem do grego, centro importante e abrigo para a civilização micênica. E esse sentido de grandeza o segue até os dias de hoje. Polo de famílias abastadas e soberbas, a cidade no norte da Inglaterra abriga belezas naturais invejáveis e maravilhadas ousadas a serem compradas por barras de ouro por seus moradores.

De linhagem fundadora, a mansão Mayhew, casa de Nikoleta e Lauren Mayhew, está localizada no topo da montanha mais alta e impiedosa da cidade. Dia após dia, a única filha e herdeira, se deleita com a vista privilegiada da costa marítima britânica.

A estudante, mantém-se de pé na varanda, tragando as substâncias químicas do primeiro cigarro do dia. O vento acanhado maneja os fios negros e soltos, roçando na pele acetinada e terna, cuidada com os mais potentes e inovadores cremes de beleza, arrepiando os pelinhos da nuca de Lauren, aproveitando a falta de um sobretudo ou um casaco para se esconder da friagem. Contudo, a sensação é tímida, gostosa.

É absurdamente impecável a paisagem desfrutada. Sem neve por volta de três, quatro dias, porém, ainda há resquícios da nevasca no alto do cume, decorando impecavelmente cada milimetro de rocha. O mar bravo desconta sua raiva nas paredes das altas montanhas, é um vai e vem infinito. Incansável.

Alternos de sucções e assopros, o tabaco é transformado apenas em uma bituca sem poder, e a chama da ponta apagada no cinzeiro prata guardado escondido no cantinho direito da sacada do quarto. Local favorito de fuga da jovem Mayhew.

Lauren agarra a mochila no ombro, para comparecer à sala de jantar, ela atravessa o corredor dos dormitórios, tantas portas brancas a serem abertas, muitos cômodos para serem limpos diariamente pelos empregados e sequer utilizados. Em seguida, a escada levemente curvada a esquerda. O corrimão dourado, banhado a ouro, e sim, ouro puro. Piso de mármore branco, reluzente, mesclado com as ondas circulantes pretas.

Ela vira a esquerda, as portas de correr estão abertas, lá, a humilde sala de estátuas, obras essas compradas de um talentoso artista originário de Argos e colecionadas por Mikel Mayhew, falecido pai da jovem atriz. Seus pés a traem e fincam ao chão. Por mais que queira evitar fixar seu olhar para dentro do cômodo, é magnético e tentador não sair dali.

Lauren engole o seco. Sua garganta trava.

É apenas uma sala, ela repete para si mesma.É só uma sala.

Uma maldita sala mal-assombrada do cacete!

Sua mãe, acomoda-se na ponta, cadeira essa, lugar reservado para o patriarca da família, porém, há alguns anos já utilizada por ela.

Ainda era de certa estranheza para Lauren ver a mãe e não o pai sentado ali, lendo seu jornal, pois se negava a dar o pontapé inicial do seu dia deslizando os dedos na tela de um aparelho celular. O homem de cavanhaque reverenciava o tabloide local por não desistir das publicações impressas e se entregar totalmente a tecnologia. Nas festas de final de ano, até mesmo os beneficiava por tal escolha.

A mesa do café da manhã, costumeiramente, se mostra abarrotada. Três tipos diferentes de pães, cinco queijos, geleias caseiras, café, suco, água, uma seleção de frutas variadas a gosto das duas mulheres, chás, incluindo Earl Grey, Darjeeling, Assam e scones com creme de leite fresco.

Nikoleta se atenta ao barulho dos passos e ergue os olhos das páginas cinzentas do jornal, levando em diante a tradição do marido.

— Bom dia, querida.

Lauren beija a bochecha da mãe para propriamente tomar seu lugar na mesa.

— Bom dia.

— Se pretende fumar escondido, ao menos exagere no perfume.

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