A maldição

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-Sete ossos e uma maldição-

Se não fosse pelos pesadelos que vinha tendo nos últimos dias, Clara não
acreditaria na orientação recebida da tia. Mas eles não falhavam. Toda noite, uma
mulher surgia no meio de seus sonhos e sussurrava: “Meus ossos.” Não
conseguia ver o rosto da mulher, nem mesmo suas roupas. Só uma silhueta
ameaçadora. E apavorante. Invariavelmente, acordava ensopada de suor frio.
Por isso, quando a tia, que era espírita, mandou que queimassem todos os
móveis e objetos de seu quarto, não protestou.
Nem poderia, depois de ter visto o que viu: a velha em transe, olhos
esbugalhados, a boca muito aberta, com uma voz embolada, ordenando a
destruição de seu quarto. Era a primeira vez em que ia à sessão espírita que seus
pais freqüentavam. E eles só a tinham levado até lá depois que Clara relatara os
estranhos sonhos que a andavam assaltando. O vulto apavorante. A voz aflita,
nervosa: “Meus ossos.”
Foi a tia quem matou a charada. Segundo ela, uma vizinha invejosa teria
jogado sobre seu quarto uma mistura macabra feita de ossos pulverizados e ervas
daninhas. Magia negra mesmo. Agora, o jeito era jogar tudo fora, queimar bem
queimado, e defumar o quarto com as ervas que a vovó incorporada na tia
indicava.
Ninguém na família ousava contestar as orientações que a tia recebia
quando estava incorporada. Ela era como que a sacerdotisa que revelava os
mistérios para todos. Às vezes, recebia uma vovó, outra vezes, um caboclo, até
mesmo um exu já tinha tomado seu corpo para dar um recado urgente.
Por todas essas evidências, Clara não reclamou quando viu seus móveis,
suas bonecas, o travesseiro, diários, tudo jogado numa grande fogueira no
quintal.
Para compensar a tristeza, ganhou um quarto novo, todos os seus livros
em novas edições e seis bonecas, cada uma mais bonita do que a outra. Estava
justamente arrumando a estante quando percebeu uma caixa fechada no chão do
quarto. Com tantas novidades, provavelmente, não tinha percebido o pacote.
Ao abri-lo, teve uma surpresa. Era mais uma boneca. Incrivelmente
bonita. Grande, como um bebê de verdade, mas era uma mocinha, com trajes
típicos de dançarina espanhola, um vestido de seda vermelha com rendas pretas e
uma mantilha rendada também preta, a boca muito vermelha, e uns olhos muito
negros, brilhantes como estrelas cadentes. Deu-lhe o nome de Muriel.
Não ficava sentada como as outras, com as pernas duras esticadas para a
frente. Um mecanismo de arame dava a seu corpo uma extraordinária
flexibilidade.
Clara sentou-a entre as outras bonecas e um ursinho, com as pernas
cruzadas numa pose sensual e as mãos nos cabelos, como se os ajeitasse para ir a
uma festa.
Linda, linda.
* * *
Naquela noite, não teve a visão do vulto. Mas foi acordada por uma gargalhada
estridente. Uma gargalhada de mulher. Sentou-se na cama, sobressaltada, mas
não havia nada no quarto. Confiante nos poderes da tia, voltou a dormir,
pensando que talvez uma mulher bêbada tivesse feito barulho na rua.
Pela manhã, no entanto, ao lado de uma de suas bonecas novas, havia um
punhado de cabelos. Cabelos de náilon. Após um exame rápido, verificou que
Amelinha, uma boneca de ar meigo e vestido xadrezinho azul-claro, tinha tido
parte de seus cachos arrancados.
Chamou a mãe correndo. Mas esta não lhe deu muita atenção. “Essas
bonecas de hoje em dia são muito mal-acabadas mesmo”, resmungou, enquanto
terminava de se arrumar para ir para o trabalho.
Durante algum tempo, nada especial aconteceu. Mas, cerca de uma semana
depois, sonhou novamente com a gargalhada. E, ao acordar, encontrou Dinda,
uma boneca com ar de tia velhinha e boa, com um corte profundo na garganta.
Nesse dia, decidiu arrumar novamente as bonecas. Tirou todas da estante,
arrumou seus cabelos, disfarçou a careca de Amelinha com um lenço, botou um
laço de fita no pescoço de Dindinha, passou um pano em cada uma para tirar a
poeira e voltou a colocá-las na estante.
Deu dois passos para trás para observar melhor o conjunto. Muriel voltou
a chamar sua atenção. Sem dúvida, era a mais impressionante. Ao contrário das
outras, possuía um olhar vivido e inquieto. Clara andou pelo quarto enquanto
observava as bonecas. Parecia que só os olhos de Muriel a acompanhavam. E
teve também a impressão de que o sorriso da espanhola estava mais aberto, como
se fosse estourar numa gargalhada a qualquer momento.
“Que bobagem”, pensou. “Ando impressionada demais com esses
sonhos.”
Mas, nos dias seguintes, a idéia começou a tomar forma em sua mente. A
cada manhã, uma das bonecas aparecia maltratada. Era um dedo arrancado, um
olho furado, a cabeça virada para trás, braços e pernas numa posição totalmente
diferente daquela em que a menina a havia colocado. Só Muriel parecia cada vez
mais viçosa, em sua pose orgulhosa, soberana da estante, sorriso paralisado e os
olhos que seguiam Clara por todo o quarto.
Consultou a mãe, que consultou a tia, que consultou os espíritos. E o
resultado de tantas consultas foi surpreendente.
Um dia, foi chamada à sessão onde a tia reinava soberana. Ali estava
novamente a velha, com seu olhar esgazeado, a voz embolada e o pesado silêncio
que impunha ao fim de cada frase.
— Qual é o problema? — perguntou o espírito incorporado na tia. Dessa
vez, não era a vovó que sempre lhe enviava orientações. Clara não conhecia a
entidade. A voz era mais grossa, como a de uma mulher bêbada. E possuía
sotaque espanhol. Nada agradável. Ainda assim, era a única pessoa — se é que se
pode chamá-la assim — a quem Clara poderia pedir ajuda.
— Alguém, ou alguma força maligna, está maltratando minhas bonecas —
explicou a menina. E, antes que pudesse expor suas desconfianças com relação a
Muriel, foi cortada pela voz grossa.
— É você.
— Como assim? — Clara achou que não tinha compreendido a explicação.
— A força maligna é você.
Subitamente, a entidade sorriu e seus olhos semicerrados brilharam na sala
escura. Era o sorriso e o olhar de Muriel.
Clara recuou, assustada.
— Quem é você? — perguntou, quase gritando e recuando ainda mais. Foi
contida pelos braços amorosos da mãe e dos outros participantes da sessão.
Ninguém ali acreditaria se ela dissesse que a entidade incorporada era um
ser maligno. E foi este mesmo ser quem falou, sem tirar o sorriso do rosto.
— Esta menina está possuída.
Clara jamais esqueceria da expressão no rosto da mãe. Uma mistura de
horror e pena, mas jamais de dúvida. O que as entidades incorporadas na tia
diziam era sempre a verdade absoluta.
Percebeu que não havia mais ninguém a quem pedir socorro.
Foi trancada no quarto. Ela e suas bonecas. Ela e Muriel, cujos olhos negros
faiscavam perigosamente. Mas Clara não teve medo. Encarou o pequeno ser que
lhe sorria da estante e agarrou-a pelos cabelos.
Sem pestanejar, atirou a boneca com força contra a parede.
Nada aconteceu.
Muriel caiu no chão, com seu jeito de boneca, sem alterar o sorriso nem
seu olhar de carvão em brasa. Clara pegou, então, seu canivete suíço e cravou-o
no coração da boneca. Já fora de si, foi rasgando a borracha macia que imitava
pele, rasgando as roupas, o véu, raspando cabelos, furando a boneca, queria
acabar com Muriel, eliminar sua força maligna.
Por fim, exausta, olhou para as tiras de borracha e tecido que se
espalhavam pelo chão. Estava, ali, ofegante, observando o estrago que tinha feito,
quando um objeto branco chamou sua atenção. Estava embolado nas tiras de
borracha. Aproximou-se e puxou-o com a ponta dos dedos: era um osso, um
pequeno osso.
À medida que vasculhava os restos da boneca, descobria outros
semelhantes. Absurdamente pequenos para serem de gente, mas com o formato
exato de ossos humanos: dois fêmures, um crânio, caixa torácica, artelhos, bacia
e uma omoplata.
Sete ossos recheavam a boneca.
Estava tão atônita com a descoberta que não se surpreendeu com a brusca
abertura da porta de seu quarto. Dali, a entidade de sotaque espanhol e sua mãe a
observavam. Foi a coisa estranha quem disse:
— Não falei? Foi ela quem destruiu as bonecas. Essa menina está
possuída.
E após uma pausa:
— Vamos cuidar dela, não é mamãe?
Clara nem gritou.
Sabia que não adiantaria.
Olhou para a entidade incorporada na tia e viu apenas seus olhos, negros e
brilhantes como pequenas contas de carvão em brasa.

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