Acolhido pela nova caixa torácica, respondendo ao choque-elétrico o coração saudável voltou a contrair e dilatar. O órgão ressuscitado demonstrou à equipe médica seu comprometimento em continuar a realizar o seu trabalho. Solitário lidaria com novos sentimentos e desafios enquanto mantinha mais uma vida com maestria.
***
Meus olhos percorriam a figura miúda e frágil de meu corpo nu a frente do espelho sobre a pia do banheiro. Jovens de vinte e um anos costumam ter algo a criticar em seus próprios corpos, desejos de mais seios, mais curvas, menos quilos, não eu. Só o que eu via era o imenso risco rosado a percorrer a extensão do meu tórax entre os seios. Talvez muitos fizessem o possível para esconder a cicatriz e sentiriam vergonha, no entanto para mim era um lembrete de superação e de vida. Ali estava meu novo coração, pulsando com uma força que o meu antigo nunca teve. Eu podia querer mais? Contemplar aquela cicatriz que ocultava meu novo coração me enchia de uma quentura agradável como se ali estivesse uma medalha olímpica de ouro, a maior conquista de todas.
Mas, hoje, o que tornava a imagem no espelho mais interessante era a cor avermelhada de minhas bochechas. Depois de uma caminhada veloz pelo quarteirão corri ao espelho. Observei cada detalhe de como o sangue fluía intenso dentro das veias e tingia meu rosto ao dar-lhe uma cor saudável, longe de minha habitual característica pálida de anos e anos. Há poucos meses nunca imaginaria ser capaz de correr por um quarteirão, mas eu consegui. Consegui! Repeti ao espelho com orgulho.
Antes de entrar no chuveiro catei o celular no bolso da calça de moletom deixada no chão. Sorri para o espelho e tirei uma precária selfie de meu rosto, sem me preocupar com o aspecto desgrenhado dos meus cabelos suados e grudados no pescoço. Quero ver a cara de Cauã quando souber que eu já posso correr? Animei-me ao conferir como ficou a foto.
Deixei qualquer problema para trás junto com o celular e me joguei embaixo do chuveiro. Ao serem acariciados pela água morna, os músculos relaxaram e a vontade de permanecer ali me fez perder a noção do tempo. O som abafado de batidas dadas com leveza na porta do banheiro me trouxe a realidade. Irene, minha mãe, advertia-me do longo tempo decorrido no banho.
Apesar de meus músculos implorarem por mais água morna, fatigados por estarem desacostumados com exercícios, desliguei o chuveiro. Evitar gastos elevados era um dos mantras daquela pequena família de duas. Não havia espaço para desperdícios ou luxos, a última década fora onerosa, minha doença cardíaca sugara os centavos das poupanças. Mesmo o fato de minha mãe exercer um cargo municipal como contadora e por isso ser a sortuda possuidora de um plano de saúde os gastos extras com remédios, cirurgias e outras complicações foram demasiadamente pesadas.
As pessoas, as poucas que conseguiam ver além do que eu gostaria, diziam ser loucura me sentir responsável pelos anos difíceis. Não foi uma escolha estar doente, elas tentariam argumentar. Mesmo assim, como eu poderia não me culpar pelo aperto financeiro enfrentado? Ou pelo fato de minha mãe ter aberto mão de seus sonhos e de sua própria vida para cuidar de mim? Os sentimentos não são racionais, não é? E por mais que eu tentasse, esse tipo de pensamento atravessava minha mente como um ratinho roendo os alicerces.
Ao enxugar os cabelos com a toalha, deixei o ar entrar profundo nos pulmões e voltei a encarar minha feição no espelho embaçado. Hoje, amanhã e depois seriam dias felizes, os dias sombrios haviam acabado. Eu precisava relembrar isso e afastar qualquer resquício de sofrimento.
Coloquei um vestido leve de alcinha com flores coloridas, abri a porta e deixei as sensações e pensamentos desagradáveis para trás para se dissiparem com os vapores do banho.
Escorei-me no balcão da cozinha acompanhando minha mãe com os olhos. O ir e vir dela pelo ambiente soava alegre, apesar do rosto marcado com rugas precoces ainda estampar a mesma expressão de cansada dos anos anteriores. Quanto tempo demoraria para a leveza existir novamente em seu rosto? Ou aquelas linhas duras de quem está em prontidão diante do pior faziam parte agora do que Irene era? Frustrada, desviei o olhar de seu rosto.
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Corações Ressuscitados
RomanceAlguns corações precisam ser ressuscitados para continuarem vivos. Alguns precisam de desfibriladores, outros de compreensão. Esta é a história de Laís, uma jovem sorridente, que nunca soube se seu coração doente teria forças para bater mais um ano...