30. Na planície - Theo

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Apesar da correria da semana recheada de cirurgias e plantões, ao entrar em casa no domingo à noite, era a sensação de tranquilidade que preenchia meu corpo.

Começava a acreditar que os anos de escuridão tinham acabado, que de algum modo eu aprendera a lidar melhor com o sofrimento tatuado em meu peito. A saudade de Clara não iria desaparecer, eu sabia, mas já não era o sentimento que me dominava.

Observei-me no espelho da entrada da sala. Meus olhos me fitaram, quase não havia mais a angústia que me levou a atentar contra a minha vida, até parecia ter sido outra pessoa.

— Teria sido um fim estúpido se Klaus não tivesse me salvado. — disse a mim mesmo em um suspiro. — Entre tantas oportunidades oferecidas pela vida, das quais ainda eram de meu desconhecimento, eu teria perdido tudo. Assim como não teria conhecido Laís.

Lembrei como ela me mostrou a possibilidade de enfrentar as piores situações se eu me concentrasse em um passo por vez, encontrando as pequenas coisas da vida até poder alcançar as que importavam de verdade. Sorri ao espelho e me afastei ao ter a certeza de que independente do que acontecesse entre eu e Laís, ela ocuparia eternamente um grande pedaço de meu coração por seus sábios conselhos.

Conselhos em sintonia com os de minha falecida mãe que me olhava com seriedade quando eu me sentia fraco demais para ultrapassar os desafios e falava:

"Theo, a vida nos surpreende com alguns buracos. Quando você cair não deve ficar chorando encolhido no escuro e sim encontrar uma maneira para sair. Às vezes conseguimos sozinhos, em outras, temos que gritar por ajuda." Ela dizia, ao acariciar meus cabelos, então sorria sábia. "Se, você, desistir e se mantiver no buraco por medo, nunca irá conhecer as outras planícies maravilhosas adiante. Estará perdendo o melhor da vida."

Minha mãe repetiu esse conselho algumas vezes, puxando-me para fora de qualquer buraco com seu carinho materno. No entanto, no mais profundo, quando Clara morreu por meu vacilo, minha mãe não estava mais lá para acariciar meus cabelos e me lembrar de que haveria outras planícies. O único conselho recebido de todos foi: "tudo voltará ao normal".

Nada nunca tomaria o rumo de antes, a morte é imutável. As pessoas não percebiam isso? Aquelas falas eram apenas mentiras. E como mentiras me trariam conforto? Ou mesmo perdão? Mas existem outros rumos, outras possibilidades e planícies, e ninguém me lembrou desse importante fato. Muito menos eu.

Havia sido tolo em me esquecer das palavras de minha mãe num momento tão crucial, e mais ainda por não ter sido forte o suficiente para sair sozinho de onde estava. Vaguei muito tempo no escuro para encontrar uma corda e me lançar para cima, mas finalmente havia construído escadas dentro de mim. Algumas com auxílio de Laís, de Klaus e de minha adorada profissão de cirurgião e estava confiante de sair rapidamente de qualquer buraco no qual viesse a cair no futuro. Por que, agora, meu coração aprendera a encontrar razões para continuar a bater diante das pequenas coisas.

Lembrar-me de como Laís teve papel principal em meu novo Ser, me fez levar a mão ao bolso e pegar o celular.

Ela não me mandara nenhuma mensagem, ou ligação ou qualquer sinal depois de eu abrir meu coração em uma página de um livro. Provavelmente minhas palavras a afastaram.

Contudo, eu precisava de uma resposta. Se ela não quisesse nem mais minha amizade, doeria e seria uma perda lamentável, porém eu me sentia forte o suficiente para continuar a viver. Sentei-me no sofá e digitei uma mensagem:

Depois da dedicatória, continuamos amigos?

Uma resposta, mesmo que negativa, é importante.

Fico no aguardo, Theo.

Deitei no sofá com o celular sobre o peito, de costas para a estante e longe do olhar da foto de Clara. Ansioso, observei o celular subir e descer conforme minha respiração se acelerava com a demora de resposta.

Laís podia estar fazendo um milhão de coisas que justificassem sua falta de resposta, mas a demora me fazia pensar que ela me ignorava de propósito.

Eu não devia ter demonstrado meus sentimentos, isso teria facilitado tudo e nós ainda teríamos ao menos nossa amizade. Por outro lado eu me sentia leve por ter aberto meu coração, ela era importante para mim e mentir poderia nos trazer mágoas mais profundas quando os sentimentos verdadeiros viessem à tona de alguma maneira atravessada.

A tela do celular piscou com o aviso de uma nova mensagem, tranquei a respiração ao ler:

Theo,

aconteceram algumas coisas e

eu preciso clarear quais são meus sentimentos.

Não tenho uma resposta.

Aquela mensagem não facilitava em nada meu coração, porém o fato de não ter sido um simples "não" ou uma mensagem grosseira dava-me alguma esperança de que no futuro próximo, ao menos, pudéssemos nos ver esporadicamente como velhos conhecidos, mesmo sem a fluidez de antes.

Você está bem?

Algo ruim aconteceu?

Eu posso te ajudar?

Mandei com sinceridade a mensagem, então me senti um tolo. Como eu poderia lhe ajudar em alguma coisa? Era ela sempre quem me trazia para as planícies.

Eu cometi um erro e as consequências são doloridas.

Não tem nada com que possa ajudar.

Sempre tem como ajudar.

Foi o que você me ensinou quando pensei que não existia mais nada.

Enviei a mensagem em um sopro só. Se ela não estava bem, eu não iria simplesmente fingir que nada acontecia, só por que nossa situação estava completamente indefinida. Eu quis ligar e dizer que iria até ela se ela precisasse de meu apoio, contudo apenas fiquei com o coração apertado em espera por alguma resposta.

Você está certo.

Mas preciso ficar sozinha agora.

Sua resposta partiu meu coração. Quase liguei para Laís, mas respeitei sua vontade. Talvez ela não estivesse preparada para conversar sobre o que lhe chateava e precisasse de um tempo.

Laís, você não está sozinha.

Quando precisar estarei aqui por você.

Após minha última mensagem ela respondeu com um obrigado e uma carinha sorridente. Eu lhe daria o espaço pedido por hoje.

Amanhã mandaria outras mensagens, talvez ligasse se tivesse coragem suficiente. Porque, independente dos meus outros sentimentos, minha amizade por ela nunca seria suprimida. E de todo o meu coração só desejava que ela pudesse ser feliz, em minha companhia ou não.


Corações RessuscitadosOnde histórias criam vida. Descubra agora