PARTE 1.1 - OSHA

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"Inúmeras vezes, depois disso, fiquei a contemplar o horizonte, lá onde o céu abraça o mar, e o mar se funde com o céu, ansiando rever meu amigo.

Houve momentos, quando as sombras do anoitecer toldavam os olhos, em que imaginei distinguir, ao longe, sua silhueta. Miragens.

Eu o reconheceria, porque minha alma seguiu com ele, e parte dele vive em mim."

Crônicas da Grande Viagem




Osha, a curandeira, seguiu para o promontório, contando as passadas segundo as batidas do cajado na planície. Ontem o sono não chegou para ela. Nem anteontem.

O futuro a preocupava, seu sucessor teria um caminho difícil.

Ensinou-lhe tudo que havia para ensinar e o banhou nos unguentos do bem e nas raízes da ira, porque a coragem requeria compaixão, força e rigor.

O caminhar do guerreiro era solitário, o guerreiro caminhava em silêncio.

Não haveria Aurora hoje ou amanhã ou depois de depois de amanhã. As luzes do céu não iam retornar, enquanto os mundos não se apartassem e unissem novamente.

Lar por tantos ciclos, castigada por primaveras precoces e pelo aumento do desgelo, a planície ameaçava a vida e o sustento de seu povo, tornava-se mais e mais frágil. Por que os Deuses os puniam, se enviaram a Estrela-Mãe para indicar aquela terra quando abandonaram seu antigo lar?

Ela Acendeu o fogo sobre arbustos ressequidos, dispostos em círculo.

Limpou a garganta, iniciou o cântico para chamar seus guias. Alçou a voz, e o corpo, mostrando agilidade que os muitos anos não permitiam adivinhar, girou ao som dos versos pronunciados na língua esquecida.

Fascinados pelas chamas, corvos imitavam o movimento espiral das chispas, grasnavam numa melodia rascante.

***

Logo acima, braços cruzados atrás do corpo, a menina observa. Atrasou-se de novo.

Osha controla a impaciência.

─ Sabe que não tenho passos para gastar? Onde esteve?

─ Por que perturba os espíritos do fogo? Eles não confiam em você, já a enganaram antes.

─ Por que julga minha magia?

A criança encolhe os ombros, vai até ela. A velha se curva, apoiada no cajado, analisa o semblante inteligente e cheio de segredos.

─ Não disse para deixar Uqalik em paz? Que preciso de toda atenção? ─ reclama. ─ Venha, espírito teimoso.

Descem o promontório pela face oposta, no andar lento da mulher.

Corvos e fogo esmaecem e se extinguem, consumidos pelo ar.

O crepúsculo tomba feito um véu de luto.

AURORA BOREALISOnde histórias criam vida. Descubra agora