PARTE 1.5 - TEMPESTADE

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Primeiro e segundo dias.

Meu tio armazenou boa quantidade de lenha, permitindo-nos dois dias inteiros na segurança da cabana. O fogo alto espantava em parte o desconforto.

A tormenta não deu trégua.

Não cerramos os olhos. Eu, contando os segundos para a planície naufragar. O pai e o tio, revezando-se no funcionamento do fogão.

Saí escondido para dar comida aos cães. A neve estava praticamente à altura do parapeito. Escorreguei por ela para fora da janela.

Depois, beijei a cabeça de Mormo, puxei as portas do galpão e corri de volta.

***

O pai me observa, suspeita que o desobedeci.

─ Amo Mormo, não vou deixá-lo morrer de fome.

─ Como é? ─ O tio engasga, atônito.

Meu pai interrompe.

─ Os cães são mais fortes do que nós três juntos. Podem se arranjar.

─ E se a tempestade não passar? ─ questiono, sem refletir.

A fisionomia do tio exprime o que não traduzimos em palavras. Contam conosco em casa. Retornar de mãos vazias não é uma opção.

─ Vá se deitar, Yuka, é tarde. Estamos cansados de admirar sua cara de raposa assustada.

─ Não tenho sono.

As galhofas do tio amortecem minha voz.

***

Terceiro dia.

Desperto. Quem me trouxe para cima?

A neve subiu palmo e meio acima do peitoril da janela. Através do vidro superior contemplo o terceiro dia de desespero e inferno.

Breve a lenha se esgotará. Nossas provisões decrescem. Lembro com saudade do glutão, por mais que a visão do bicho morto me enoje. Ficar isolado e sem comida é pior.

***

Quarto dia.

Difícil saber se o acampamento continuará de pé.

***

Quinto dia.

A água do poço congelou.

***

Sexto dia.

Não temos lenha. Minha janela está bloqueada por uma muralha de gelo. A porta da cabana não abre. O tio derrete um pouco da neve que assentou no fundo da lareira, caída da chaminé, para o chá. Não iremos morrer de sede ao menos.

As horas se arrastam. Sento-me nos degraus da escada. Meu pai permanece calmo. O oposto do tio, que se queima com uma acha de lenha.

Yuka? Corre, Yuka!

O sono e Ila me espreitam. Resisto. Se dormir, sonharei com ela. Ila não tem sono.

***

Uma semana.

O sol domina a planície, elimina os vestígios da tempestade. A luz alaranjada empresta matizes alegres ao dia, dá a ilusão de carregar partículas de pó cintilante. Estendo as mãos nuas para receber o beijo cálido.

Mormo roça minha perna. Brinco com ele. Desde que por fim metemos a cara fora da cabana, acompanha-me aonde vou.

Enquanto meu pai arruma os trenós, o tio trabalha no arpão, procura arestas ou farpas. Não fico confortável com objetos cortantes ou perfurantes.

A sensação do aço polido contra a coxa é real demais para que eu a esqueça.

Ganhei a faca após o episódio da fenda. Osha forjou a lâmina, o tio esculpiu o cabo em presa de morsa. Aprendi a usar e afiar a faca. Lâminas cegas são inúteis na planície.

Aprendi também a esfolar e limpar a caça. Em teoria. Ainda não precisei testar meus conhecimentos. E duvido que sirvam para fugir de gretas e buracos.

Meu pai tem urgência.

─ Yuka, vamos sair.

Mormo e Caspien assumem a dianteira. Cada integrante da matilha tem seu lugar. Não precisam ser conduzidos.

─ O garoto sonha de pé, irmão, a cada dia mais se parece com a bruxa. A mulher amedronta Deuses e Demônios. Yuka devia se manter longe dela. Vive colado na saia da feiticeira. Perdemos a menina apesar dos feitiços da louca.

Segundos de tensão. Nunca mencionamos Ila.

Apanho os dois de surpresa.

─ Osha não é bruxa e não enfeitiça ninguém, só os burros.

─ Yuka, pare. Peça desculpas a seu tio. Ele se preocupa e tem razão. Não quero que passe todo tempo com a curandeira. Isso é para crianças.

─ Não! ─ recuso, bato o pé. ─ Ele se desculpa primeiro.

O tio ri, enerva-me mais.

─ Pai, Osha é minha amiga.

─ Basta. Distrações roubam vidas, preciso de você concentrado.

Desisto. A mão firme do pai pousa em meu ombro

─ Entendo o quanto gosta de Osha, ela sempre será importante em sua vida. Mas agora se tornou um provedor, um de nós, tem responsabilidades.

A brisa sopra meu cabelo. O sol não esquenta o ar nem o vento.

─ Quase o perdi. ─ Os dedos levantam meu queixo. ─ Mormo não estará por perto uma segunda vez. Se volto sozinho, perco Nauja também. Prometa que prestará atenção.

Balanço a cabeça. Minha vontade é chutar as pernas do tio. As lambidas de Mormo não apaziguam a raiva.

Eu te protejo, Yuka.

Rodo o pescoço. Ila continua viva? Mortos retornam? Osha mentiu?

Ganidos e imprecações à esquerda. O tio luta com os mestiços. Atiçam e mordem uns aos outros, embaraçam-se nas tiras. Períodos de inatividade afetam os cães.

A excitação se propaga pelo grupo e enerva os malamutes. Mormo arranha a planície com as patas, desassossegado. Adianta-se, puxa as correias, empurra Caspien com o focinho.

Um dos cinzentos rompe o peitoral e se lança para o alto. Aterrissa centímetros à frente de nosso trenó. É rechaçado pela matilha. Arreganha os dentes, da boca goteja saliva. Dirige sua frustração para mim.

Osha mostrou como enfrentar predadores.

Não demonstre medo.

Não recue.

Não dê as costas.

Não corra: correr estimula os instintos do animal, transforma você em presa.

Mormo avalia o cinzento. O olhar feroz que apavora o clã. Sei que me defenderá, pode se desprender das correias sem dificuldade. Meu pai se antecipa e imobiliza o cão pelo pescoço, arrasta-o de volta. Mal noto o cabo da faca entre os dedos, o braço em posição de defesa.

─ Pegue a bolsa, Yuka ─ o pai avisa, a fronte carregada ─, itens essenciais apenas.

Ele prende os mestiços. Troca olhares com o irmão, e ambos fixam minha mão crispada.

─ Cuidado, sobrinho, temos um dia e meio de trilha. Utilize a lâmina para arrancar as peles das focas. ─ Meu tio recupera seu humor.

─ Odeio você! ─ esbravejo, chuto as poças e os montes de neve. ─ Sou um caçador das planícies.

Ambos reviram os olhos.

AURORA BOREALISOnde histórias criam vida. Descubra agora