PARTE 1.3 - ACAMPAMENTO

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Partimos.

Mormo nos leva pela trilha sobre o mar, evita as artimanhas do gelo. Ele não é apanhado por fendas traiçoeiras.

Hesitou de início, inquieto.

Acomodo-me com meu pai, de costas voltadas para os cães, entre mantas, ferramentas e provisões, envolto no casaco de pele de foca que a mãe cortou e costurou à luz da lamparina. À medida que avançamos, recebo a corrente enregelante nas costas, empurrada pelo movimento do trenó. Meu tio vem em seguida, com seus mestiços acinzados. Ouço-o instigar os animais, urrar.

─ Yuka, ainda sente o traseiro?

Eu e meu pai nos entreolhamos, cúmplices. Minha atenção se concentra no rastro deixado na neve.

O horizonte se confunde com o céu. Impossível distinguir onde um começa e o outro termina. A imagem é deslumbrante, leva a crer que estamos fora da terra e do tempo, que flutuamos num mar plácido e imutável. O véu esfumaçado esconde o firmamento, tira um pouco da magia da paisagem.

Os rituais de Osha não funcionaram, posso jurar que minha irmã segue conosco no trenó.

Escuto a voz soprada pelo vento.

Yuka.

Ila?

Não tenho medo, mas Ila não devia estar aqui. Os vivos não se metem com os mortos, e os mortos não procuram os vivos. É assim. Rituais servem para orientar os que se vão.

Ila se perdeu? Precisa de ajuda? Não posso perguntar ao pai, não falamos de minha irmã.

Yuka? Vem, Yuka!

Ir para onde?

Ila?

Vasculho os arredores, sem saber exatamente por que razão.

Brinca comigo. Por que vai embora?

Calafrios percorrem meu corpo, embora eu esteja agasalhado. O pai me espia de vez em quando, percebo seus olhos em minha nuca.

─ Segure-se, vamos acelerar agora.

E atiça a matilha. Mormo devora o chão.

─ Coragem, Yuka ─ meu tio incentiva.

Segue nosso rastro, não tão perto que coloque os cães e os trenós em perigo. Mantemos distância uns dos outros, pois a planície pode guardar surpresas e exigir manobras súbitas.

Ila canta uma canção da mãe.

Sacudo os ombros, tento distrair-me com a trilha. Distingo vultos no horizonte. Lobos, caçadores, trenós? Não é Ila, ela é pequena.

O vento diminui. Tenho sono.

***

A mãe e eu caminhamos. Não gosto do mar nem do barulho que faz sob a plataforma. O suor toma meu cabelo e escorre pelas costas.

Escuto histórias de sua infância, da vida no Continente. Minha mãe quer me mandar para a escola. Não há nenhuma em nossa aldeia. É apenas um sonho.

Osha nos ensina, sabe de coisas que não compreendo, nenhum de nós compreende. E eu prefiro estudar com ela.

Por que o sonho da mãe entra no meu?

Antes que possa descobrir, o chão cede perante as Montanhas.

Montanhas?

Levo segundos para reagir, deslizo para trás. A água engole as pernas da mãe. Jogo-me na planície e a seguro pelos ombros.

AURORA BOREALISOnde histórias criam vida. Descubra agora