PARTE 1.2 - YUKA

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Na planície, à noite, faz frio e silêncio. Minha gente e eu nos recolhemos cedo no inverno. As horas de luz são poucas, o entardecer é longo e há muito a fazer antes do fim do dia.

Amanhã, pela primeira vez, sairei com meu pai e meu tio para caçar, embora o gelo já esteja quebradiço. Só os mais experientes se arriscam. Precisamos de carne, nosso estoque está no fim.

Meu pai conhece as planícies, sabe onde o chão continua firme. Observo suas mãos ao preparar armadilhas, afiar facas, conferir arpões. São mãos fortes, ásperas, marcadas por cicatrizes e pelo tempo, mãos de homem das planícies.

Lá fora o vento interrompe a quietude, assusta os vivos e perturba os mortos com seu silvo enraivecido. Um rugido vem nos sobressaltar, avisa que não estamos sozinhos na imensidão congelada.

Perdida em pensamentos, a mãe canta e separa as porções do jantar. Por vezes, o olhar nos acompanha, volta-se para meu pai quando o percebe distraído, sorri satisfeito. Nele, há calor suficiente para espantar o frio e o medo.

A escuridão me apavora, ainda que o pai diga que a noite é apenas o repouso do dia. O tempo passa devagar, tudo se move no próprio ritmo, independente de nossa vontade. Restam várias horas para o amanhecer. Não desejo me tornar caçador. Osha sabe. O pai também, desconfio.

Minha mãe beija meus cabelos, escuros e lisos como os dela. Tenho seu tom de pele e o mesmo jeito manso e contido que o pai diz esconder um temperamento indomável e aventureiro. Ela largou a família no Continente para seguir com ele. Nunca vi arrependimento nela. Seu amor é um sol que irradia sobre nós.

Voo para as extensões vazias. Os dedos do pai sacodem minha cabeça, desfazem meu cabelo. Gesto familiar, modo de demonstrar afeto, algo de que sentirei falta.

─ Vá dormir, Yuka! ─ O tom imperativo me arranca da visão da neve e do deserto além da aldeia.

A mãe escolheu meu nome. Seu melhor amigo de infância se chama Yuka. Ele veio participar da cerimônia de minha apresentação ao clã. Não me lembro dele. Só o conheço da caixa de recordações. Não compreendo para que servem papéis velhos e objetos sem valor.

"Memórias são pedaços de nós", o pai explicou. "Osha guarda a história dos ancestrais. Contar as histórias em torno do fogo não a deixa esquecer."

A cabana de Osha era a menor do clã, e a caixa devia ser grande para conservar tantas memórias. Tentei imaginar onde a esconderia.

"Vai receber a caixa quando sua mãe se for, ela a fez para você. Honre as memórias dela e as passe adiante. É como preservamos nosso passado", encerrou.

***

Pretendo encontrar algum navio daqueles que Osha afirma existirem no fundo do mar, repletos de tesouros. O pai não irá enfrentar a planície em busca de carne e peles, a mãe não machucará os dedos no tear.

Osha fala de tesouros e me desenha navios. Um está pendurado sobre a cama. Pode ser que apareçam navios ou tesouros enterrados na planície, se eu observar o desenho toda noite.

Nossa cabana é pequena, temo que a tempestade a leve algum dia. Usamos roupas simples, feitas pelas mulheres do clã com peles e tecido fiado no tear. Possuímos apenas o essencial para não morrer de fome, embora não aflija meus pais.

***

Apenas Ila os deixou tristes. A mãe chorou por muitos dias e noites em um pranto silente, e a risada de meu pai jamais foi ouvida de novo.

Ila morreu minutos depois de chegar.

Talvez o que entristeça meus pais seja a falta do que ela teria sido.

Osha esteve conosco durante três luas, fez orações, cuidou para Ila não ficar presa comigo. Os mortos podem se recusar a ir. É atribuição de Osha encaminhá-los para o lugar certo.

Eu refleti bastante e não vi razão para minha irmã permanecer na forma de espírito se não quis ser minha irmã.

***

O vento se enfureceu após nos deitarmos. As paredes reclamaram, tive sonhos turbulentos. Sonhei com Ila. Nunca aconteceu. Ela pedia que eu a seguisse.

Acordei com a voz do pai.

Sairemos antes do alvorecer, disse.

***

Comemos peixe e bebemos chá. Enquanto mastigo o último bocado, o pai termina de arrumar o trenó. Mormo irá na dianteira, ao lado de Caspien, liderando os demais. Inteligência e velocidade juntas, os melhores malamutes do grupo.

Temos matilha forte e veloz. Meu pai escolheu os animais com cuidado. Mormo é o líder, sabe por onde ir. Encontra o caminho em qualquer situação, mesmo sob a tormenta. Salvou meu pai inúmeras vezes. As planícies estão em seu sangue.

Meu pai chama. Apresso-me para fora, não sem receber o beijo e o abraço da mãe. Há umidade no rosto e orgulho na voz que me deseja boa caçada. Hoje me torno membro do clã. São as regras. O pai e o tio estão prontos, aguardam Osha.

Ela traz seus trajes cerimoniais e colares de ossos, vem no andar preciso de quem conta os passos. O manto flutua atrás dela e se destaca na claridade rósea. As manhãs pouco diferem do entardecer no inverno. Os invernos são compridos e não têm pressa ou vontade de acabar.

Osha estaca diante de mim, bate o cajado três vezes no solo. Unge minha testa com resina vermelha e óleo perfumado em vez do sangue de foca, causando surpresa no grupo. Recita preces no idioma dos viajantes.

É o que somos.

***

Viemos de terras longínquas, fugimos da Terrível Destruição em canoas. Navegamos sem parar, guiados pela Estrela-Mãe, que surgiu no céu para apontar o rumo.

Nosso povo ouvira, de outros viajantes, sobre vales quentes e férteis, cobertos por florestas intocadas, com caça abundante, tão distintos das planícies áridas que pisamos.

As estações, o gelo e o mundo se alteram o tempo inteiro.

Talvez as canoas se tenham extraviado, talvez fossem somente histórias.

Ninguém conhecia a resposta.

***

Os homens assistem ao ritual. Estão aqui por mim, para me abençoar e invocar os Guardiões. Um a um, tocam meu ombro e pedem que eu me torne filho das planícies.

Aguta e Auka mantêm-se afastada. Fomos amigos.

Sou um caçador agora. Meu braço arde.



AURORA BOREALISOnde histórias criam vida. Descubra agora