PARTE 1.4 - PREPARAÇÃO E ESPERA

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Flutuo, a água me sustenta. Osha e seu cajado permanecem na margem.

Relaxo braços e pernas, completo uma cambalhota. Dou impulso em direção à superfície, subo acima do espelho pacífico, ar invade meus pulmões, comemoro. Aceno para Osha.

Novo estampido, o tremor gera ondas que me sugam para baixo.

"Oshaaa."

"Nade, garoto", comanda, do alto. "Nade para a margem. Não vou perder passos com você."

"Não consigo, Osha", respondo, com raiva, inalando água salgada e me debatendo.

Afundo. Vejo a superfície acima e a luz perfurando a água.

As batidas do cajado ordenam que o mar se acalme, fazem o gelo cobrir a água. Se não emergir depressa, eu me afogo.

***

Reconheço meu tio, a cabana, o fogão. O mar e o gelo desapareceram, a consciência retorna.

─ Ele nos ouve, irmão.

O tio coça o queixo.

─ Talvez ainda esteja tonto. Ou sonhando. O garoto vive com a cabeça longe do corpo.

Pelo canto do olho, vejo o pai. Despeja líquido marrom na cuia.

Levo os cotovelos para trás a fim de erguer o tronco, o tio impede, mantém-me deitado. Tenho almofadas embaixo da cabeça.

A cuia é encostada em meus lábios. Aroma de jasmim, o perfume de Ila.

***

Ajudei a mãe a dobrar e guardar as roupas na arca. Todas as crianças da aldeia ganham a sua ao nascer. A fogueira de Osha destruiu tudo que pertencia a minha irmã. Não podemos conservar os pertences dos mortos.

Descumpri a lei, escondi o casaco. O pai costurou arminho nos punhos e capuz, na gola e em volta da borda.

Não ligo para ancestrais ou leis antigas. Decidi que a mãe precisava guardar algum objeto de Ila. Ela pressionou o casaco contra o ventre, segurou as lágrimas e me devolveu, porque eu sofria mais. Mentira. Odeio Ila. Por que não ficou comigo?

***

─ Beba, Yuka ─ meu pai ordena.

A infusão sabe mal. Amarga, oleosa e quente demais. Cuspo a maior parte.

─ Não morreu ─ o tio debocha. ─ Herdou a cabeça dura do primo e o miolo mole de Osha, por isso é maricas. Tem até os olhos vesgos da bruxa. Não é meu sobrinho.

─ Não sou maricas, bateram em mim!

O pai intervém.

─ Você caiu, Yuka, desequilibrou-se e despencou na comida dos cães.

─ Carregamos o maricas nas costas e fedemos a peixe podre por causa dele, irmão.

Esqueço a dor, fico de pé, irado, punhos cerrados.

─ Você já cheira a peixe de qualquer jeito. É um porco, não toma banho.

Rosnamos um para o outro, partimos para a luta. O tio me arremessa sobre o ombro e desfere palmadas no meu traseiro. Esmurro as costas dele. Meu pai se senta no banco, arruma o tabaco no cachimbo. Sua atenção está na planície.

AURORA BOREALISOnde histórias criam vida. Descubra agora