Porções de peixe e pão frito, gordura de morsa, folhas de chá, cantil, pederneira, unguento, muda de roupas, par extra de luvas, corda, manta. Bolsa preparada. Todo caçador leva uma por segurança.
Caso ocorram acidentes, a bolsa pode salvar nossas vidas, a mãe mencionou enquanto cortava e costurava a minha. Enfio a cabeça e um braço nas alças, confiro o peso nas costas.
O trenó do tio vai primeiro. A custo, conteve os mestiços e amarrou a carga.
Meu pai aguarda, paciente, conversa com os cães, acaricia as orelhas de cada um. Dedica mais tempo a Mormo. Ele ganhou lugar especial no coração do pai quando me retirou do mar.
Faço uma caminhada curta. As correntes emudeceram, o que aterroriza mais que seu murmulho incessante. Não quero avançar. O mergulho nas águas geladas é bastante presente em meus pesadelos.
─ Pai?
─ Escuta algo, filho?
A pergunta causa estranheza. Ele calça as luvas, verifica o céu, espreita o horizonte sem fim. Sem nuvens, límpido.
Balanço a cabeça.
─ A água, não ouço a água.
─ Tudo quieto, quieto demais ─ comenta.
O pai se agacha, fisionomia grave, olhos à altura dos meus.
─ Não se afaste do trenó ─ orienta. ─ Aconteça o que acontecer, esteja próximo à matilha e com a bolsa no corpo. Yuka, prometi a Nauja que o levaria para casa. Não minto para sua mãe.
─ Tenho medo.
─ Somente os loucos não sentem medo, o medo nos mantém vivos. ─ Desfaz meu cabelo, envolve meu tronco, levanta-me no ar.
Rimos.
─ Gorro e luvas, filho, Mormo não gosta de esperar. Talvez seu tio já esteja com uma foca desmembrada.
Disfarço a cara de nojo.
Encontrei um filhote certa vez, alvo e felpudo. Busquei Osha. Nós o entregamos à primeira toca visível. Uma foca adulta apontou a cabeça no vão em seguida. Eu a vi pela segunda vez no promontório, reconheci as marcas. Torço para não ser a do tio.
Ao contrário da vinda, estendo-me voltado na direção dos cães. Quero evitar a visão da planície. Um leve toque nas tiras e Mormo se movimenta. Dispensa ordens ou indicações. Lento a princípio, aumenta o ritmo gradualmente.
O sol prossegue vibrante. Aniquila as sombras do caminho em todas as direções. Meu pai baixa os anteparos sobre o gorro, a matilha corre com a cabeça baixa. Na posição em que estou, a claridade não importuna tanto.
Independente do sentido escolhido, sempre estamos voltados para a luz. Haverá explicação.
Mormo e Caspien instigam os demais. O atrito é mínimo. Viajamos sobre pistas de vento, vento que sopra o cantarolar de Ila. Ila adora cantar.
Minha irmã morta habita as planícies?
Existem aldeias para os mortos?
Atingimos a área de caça em menos de hora. O tio deixou o trenó atravessado. Duas focas abatidas descansam ao lado. Os cães batem-se pelas vísceras, pintam de rubro o gelo. Meu tio e seu arpão trabalharam bem. O cheiro acobreado é pungente. Pressiono o nariz com força, ou expulsarei do corpo minhas próprias vísceras.
Paramos a alguma distância dos mestiços, numa freada repentina. Somente a perícia do pai impede sermos projetados para fora. Mormo não simpatiza com a matilha do tio.
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AURORA BOREALIS
FantasyYuka vive com a família em uma pequena aldeia distante do Continente, assombrado pela morte de Ila, sua irmã. O mundo árido e gelado e os membros do clã são tudo que conhece. Quando sai em sua primeira caçada com o pai e o tio, é surpreendido pela t...