Um observador atento teria percebido a transição. O corpo ali deitado se tornara mais solto, o queixo levemente caído, provocando um ressonar. Um ressonar um tanto baixo, mas que romperia o silêncio noturno da sala, se esta estivesse mesmo em silêncio. Mas o monitor permanecia ligado, repetindo de modo incessante, hipnótico, o mesmo filme de sempre. O monótono repetir do conhecido ciclo de música e de vozes induziu certo estado na mente que jazia em frente às caixas de som, ainda encarcerada no corpo semi-relaxado, jogado no sofá. Teria também percebido que, finda uma etapa do sono, iniciava um movimento rápido dos olhos, que caracterizava mais uma rodada de sonhos, aqueles sonhos recorrentes e ainda indecifrados dos quais amanhã pouco poderia se lembrar.
E o sonho começou misturando passagens do filme com suas experiências e anseios, de um modo confuso, ora em primeira, ora em terceira pessoa. Aos poucos, timidamente, o sonhador passou a identificar-se com o protagonista da estória. Uma clara consciência nasceu, tomou forma e se apossou do "corpo" que se movia no espaço virtual do sonhar. O drama de uma vida com um propósito bem específico se apresentou com fluidez, cada evento se transformando em sua conseqüência, sem uma divisão clara, sem a separação em capítulos – como sói acontecer na natureza. As pessoas-chave vieram e o instruíram, tudo o que havia a dizer foi dito e a compreensão total se acendeu. Havia, então, tarefas a cumprir. Ele sabia o como. Ele sabia o quando. Mais que tudo, ele sabia que podia. O sacrifício individual por um ideal maior podia, aparentemente, trazer mais satisfação do que dor.
Então, no número dezessete da escala de zero a vinte e cinco, que correspondia ao total dos 500 watts de potência das caixas acústicas, a música do despertador explodiu em meio à manhã que se iniciava e o sonhador, já sentado pelo choque e por simples reflexo, acordou. Roubado de toda a experiência da noite, já não sabia do sonho mais nada. Uma memória mais antiga, impressa e repetida, dizia do fundo do cérebro que começava outro dia. Que haveria tarefas corriqueiras, que haveria dificuldades, que talvez até houvesse novidades, mas que haveria, certamente, o tédio. E que, como sempre, ele não sabia se podia, mas sabia, decididamente, que não queria. Mas era a rotina...
Era a rotina que garantia o sustento, aí igualmente incluídos o pão, o café, o almoço, o financiamento da casa e os livros. Durante os quatro ou cinco passos trôpegos que separavam o sofá da estante, para onde corria para calar o estrondo que viria a incomodar os vizinhos, viu de relance o livro, caído no chão desde antes que o filme começasse, na noite anterior. O marcador, havia dias transitando lentamente entre as trinta primeiras páginas, era uma tira de papel impressa com uma passagem de Erasmo: "quando consigo um dinheirinho, compro livros; e se me sobra algum, compro comida e roupas". Pensou num átimo se ele mesmo jamais teria podido se exprimir melhor. Não. Como fuga ou como alavanca, os livros eram pão e eram sustento. Os livros eram alento. Sempre haviam sido e, sentia ele, seguiriam sendo, sempre.
Um copo d'água. Um e meio. Comprimidos de vitaminas. Uma leve irritação na garganta dizia que a noite bem poderia ter sido passada na cama, que o inverno chegava, que o ar-condicionado do escritório era um exagero. E que quem reclama demais enche. Uma camiseta por baixo e pronto.
O desjejum era adiado até a barraquinha na porta do escritório. Um copo de café preto, mal adoçado. Um naco de queijo curado de gosto indefinido. Um pão com manteiga para o meio da manhã, entre um relatório e um novo processo. Ali pelas dez ou dez e meia quando estivesse, de fato, acordando.
Não era uma pessoa diurna. Não que gostasse da boemia. Pelo contrário, achava perda de tempo e de recursos, ambos tão escassos. É que, como trabalhasse pelo salário e não por prazer, não lhe parecia que de fato vivesse até que estivesse de novo em casa, à noite. Aí é que seu "dia" começava. Resistindo tenazmente ao ataque do sono, chegava a seu limite. E, como ocorre com a maioria dos limites perseguidos à força, uma vez alcançado, era transposto, e uma nova jornada começava, até a madrugada. Jornada de sonhos, é bem verdade. Pois que nada se realiza na noite, no refúgio. Nada, a não ser planos. Mas alguma cultura, sim, se podia adquirir. O preço era a perpetuação do ciclo de manhãs sonambúlicas, de tardes de espertar, de noites acesas. Não que se preocupasse tanto com o desempenho no escritório. Sua opção seria sempre pela vida lá fora, fora do tal mundo "corporativo". Mas persistia, ao fundo, a insegurança de uma eventual falha, que lhe prejudicasse o emprego e pusesse por terra o castelo de cartas – e documentos e pastas e contratos –, o tênue equilíbrio alcançado à custa de uma identidade.
Naquela manhã a rotina se tornava mais gritante, mais sólida. Talvez fosse o volume aumentado do tráfego. Talvez fosse o cansaço acumulado da semana. Talvez fosse o próprio condicionamento. Já no escritório, deu-se conta de que era manhã de sexta-feira. Soube imediatamente que, assim que despertasse, alguma sensação de liberdade o conduziria mecanicamente até o final do expediente. Era isto, também, parte da rotina.
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Incipit ou Um Observador Atento Teria Percebido
Historia CortaUm anti-herói relutante em sua viagem de insônia, desesperança, revolta e ação.