Solidão

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Os olhos ainda ardiam um pouco. Era como se uma areia fina estivesse sobre a córnea, arranhando sempre que piscava. Mesmo ali, meia hora depois, sob a noite mal iluminada da praça. O que mais poderia esperar de quase doze horas em frente a um monitor? Mas a causa era justa. Após tanto tempo de trabalho desviado para o plano, havia que compensar. E quaisquer tarefas pendentes atrapalhavam a concentração nos detalhes de seu projeto. O caso era que não conseguia se concentrar totalmente no serviço, nem relaxar e desistir de vez. Qualquer um dos extremos seria bom. Ficar no meio do caminho era o que o matava.

O sono chegara e o tornava improdutivo. Ignorou-o enquanto pôde. Por fim, colocou o computador em stand-by, desligou o monitor e saiu. A ideia de ir para casa era ainda mais desagradável que a de continuar no escritório. Assim, sentiu-se grato ao ver que obras na via o obrigavam a tomar um caminho mais longo. O sono aumentava e aumentava, quando passou em frente à mesma praça de seus finais de semana. Estacionou e desceu, sem pensar duas vezes. Perambulou por alguns minutos, até que a mente confusa sugeriu que desse uma volta, apenas, antes de ir. Sombras do lado oposto indicavam um grupo de amigos ao redor de um banco. Talvez algum conhecido. Apressou o passo, inconscientemente, até que a proximidade mostrou que eram apenas... Estátuas!

Era lastimável, mas ainda assim conseguiu rir de sua própria condição. O início da madrugada era agradável naquela época do ano. O frio era discreto, de modo que não incomodava tanto, e ao mesmo tempo ajudava a despertar. Flores e folhagens emolduravam os canteiros, os pinheiros tinham os ramos prateados de luar e o ruído das fontes era audível, livre do tráfego. Ainda assim, a quietude do lugar não se reproduzia no espírito noctívago. Que é que iria fazer em casa? Quanto mais se aproximava de completar a volta, menores e mais lentos se tornavam seus passos. Aceitou com resignação o fato, e acompanhou seu próprio corpo em terceira pessoa até que parasse por completo.

As árvores dos dois lados do caminho o remeteram a uma cena familiar. Lembrou-se que, ao término da infância, costumava ter um sonho recorrente. Desde então, havia lido e ouvido relatos similares. A diferença era que todos os que ouvira davam conta de locais de refúgio: pequenas grutas, planícies verdejantes, praias isoladas. O lugar dele era apenas um pequeno trecho de caminho. O brilho do sol filtrava por entre copas altas e a terra batida tinha seu vermelho realçado pela luz. Porém, ao tentar seguir em frente, o sonho fugia. Não havia origem, não havia destino. Havia, tão somente, o caminho, que não o levava a lugar nenhum.

Para prorrogar o momento, olhou em volta. Outras duas almas solitárias vagavam como ele pelo limbo da noite. Um, cambaleante, tentava subir a avenida que levava à praça. Outro, a passos miúdos, olhar enterrado no chão, as costas curvas de desalento, cruzava a alameda central. Pensou que fosse um espelho mas, definitivamente, se enganava. Um observador atento teria percebido que suas costas estavam eretas, os joelhos levemente fletidos, o corpo relaxado. Havia altivez em sua solidão. Parecia já tarde demais.

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A realização de um ato como aquele demandaria alguns atributos: vontade, desprendimento e boa dose de loucura. Os dois primeiros precisaria buscar bem dentro, e sabia que só alcançava dentro em contato com a natureza, nos espaços escondidos entre os morros, onde estava a verdadeira alegria de viver. Mais dois dias de rotina excruciante o separavam do refúgio pretendido, os planos feitos, o mapa empoeirado sobre uma das prateleiras do escritório de casa, há dois meses. Mas, onde era mesmo que morava?

Quanto ao terceiro atributo, decidiu recusar-se a aceitar que já habitasse seu interior, ainda que em potência. À noite, antes de dirigir-se ao hotel, baixou da web para o fone cópias em Português e em Inglês de "O Elogio da Loucura", de Erasmo de Rotterdam. Haveria ali alguma orientação. No mínimo, haveria consolo. Erasmo apresentava no texto – ou no trecho que havia lido no passado – a loucura como uma espécie de deusa, a conduzir desde as mais corriqueiras ações e instituições humanas, como o casamento e a guerra. Uma leitura mais detida, esperava, poderia mostrar que gente mais nobre já havia pensado – e praticado – coisa bem pior. Setenta e seis páginas eram uma quantidade factível. Não sentia mesmo sono algum. Muito em breve descobriria, com tremendo incômodo, que ali o termo "Loucura" poderia ter sido traduzido, com mais exatidão, como "tolice".

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Incipit ou Um Observador Atento Teria PercebidoOnde histórias criam vida. Descubra agora