Fim

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Tinha seguido as luzes coloridas até deparar com um carro da Polícia Rodoviária. Logo à frente dele, uma figura solitária, queixo caído, olhar de surpresa. Alinhou alça e massa de mira contra a base do pescoço e disparou, no momento exato em que o policial percebera sua presença e movera o corpo. Temeu ter errado, mas viu o homem cair no chão, agachado em meio a uma grossa bruma de cimento. Efetuou mais quatro disparos, tentando vencer a barreira do kevlar. Sabia que jamais conseguiria, com calibre .380. Manteve a visada e andou rapidamente, na diagonal, para o lado esquerdo do corpo, agora deitado no asfalto. A possibilidade maior era de que ele fosse destro.

Passou pelo corpo caído e percebeu, mais que concluiu, que ali ainda havia vida, ainda que em tênue manifestação. O brevíssimo impulso de efetuar o disparo de misericórdia foi consumido pelo turbilhão de necessidades imediatas. A urgência de confrontar a possibilidade de um próximo adversário. A escassez de munição. Certa empatia – ou não, piedade – para com o homem, representante vitimado de um inimigo impessoal. A desonra de golpear o adversário caído. A falta de um impulso assumidamente assassino. E no fundo, sob o manto de tudo isso, uma ponta de sadismo por saber que se prolongava um sofrimento, enquanto se adiava a ruína inevitável. Um modelo microcósmico do sistema que aquele homem, afinal, representava. Que aquele homem, provavelmente, representava com a mesma falta de entusiasmo com que ele próprio havia suportado quase todas as suas experiências profissionais. Fez o caminho oposto na diagonal e logo deu-lhe as costas.

Atravessou com passos firmes, mas não rápidos, uma das duas últimas faixas da rodovia, em direção ao acostamento e à pequena elevação de terra e mato. Buracos e marcas de frenagem mostravam quanto descaso era dedicado ao trecho pavimentado que abrigava o templo da arrecadação. Constatações repetidas. Ecos de constatações repetidas. Angústia. Precisava muito dormir. Queria, muito, dormir.

O calor no pescoço e um estalo tão próximo a seu ouvido esquerdo não lhe chamaram tanta atenção. Foram os estampidos às suas costas que o fizeram virar-se. Duas, três repetições? Descobriu-se sentado sobre o asfalto. Podia ver com rara clareza o policial, estranhamente recostado à estrutura arruinada, a arma mais uma vez em contato com o solo, presa a uma mão que se agarrava, firmemente, a uma vida prestes a terminar. A adrenalina emprestava nova clareza a sua visão enquanto uma cabeça se enquadrava novamente nas miras da pistola. Um último disparo certeiro, livre de emoção, livre de julgamento, tornado justo por seu caráter revidatório. O calor que dominava seu peito não era fruto do alívio, da eliminação da ameaça. Era o sangue que ensopava a camisa e descia pela frente das calças, montando um quadro possivelmente vexatório, não fosse a banalidade das aparências nesse momento. O instinto de preservação, ainda atuante, fê-lo arrastar-se até apoiar as costas na mesma parede, de modo a manter a rota de fuga à vista. Estava disposto a lutar – pela consciência, não necessariamente pela vida – até o instante derradeiro. Viu surgir uma ponta de revolta, outras de ódio e o impulso de barganha... Um breve momento de tristeza. Por fim, resignou-se. Esforçou-se por manter um ritmo respiratório. Tarefa quase impossível. Buscou manter-se atento à possível aproximação de novos oponentes. A vista já se turvava. Num estado livre de dualidade, mais além da Esperança e do Medo, poderia haver Paz. Tentou eliminar quaisquer pensamentos. Um redemoinho girava em seu cérebro.

Livre de raciocínios, fixou a atenção no movimento do peito. Da escuridão, veio a luz. Lembrou-se de relatos coincidentes de pessoas que diziam ter visto um convidativo túnel de luz em supostas experiências de quase-morte. Sentiu desconforto em constatar a possibilidade de que estivessem certos, os esotéricos que tanto detestava, e perdeu, assim, a imobilidade da mente. Não tinha como saber que o efeito de luz de túnel era percepção absolutamente física, causada meramente pela morte dos neurônios no cérebro, que se manifestava externamente em seus olhos, em seu tônus, em suas feições. O tempo se alongou e roubou sua concentração. Não se deu conta quando o queixo levemente caído passou a manifestar o silêncio de sua aniquilação. Um observador atento teria percebido...

O fim.

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Incipit ou Um Observador Atento Teria PercebidoOnde histórias criam vida. Descubra agora