A siderurgia havia alterado a atmosfera da cidadezinha. A sujeira substituíra o encanto, o ar colonial, por uma camada de cinza, ou camadas indistintas de cinza, não o podia definir. Em breve, novos tempos e novas tecnologias mudariam também esta paisagem, talvez para pior. Perdeu o desejo de aguardar ali e seguiu viagem, desistindo de parar, fosse para urinar ou para comprar água.
Antes do cair da tarde, passou pelo pedágio, à entrada do parque. Propriedade religiosa, outrora colégio interno, passara a polo turístico e a centro cultural. As instalações simples e a posição retirada convidavam ao recolhimento e ao descanso. Mas havia, mais além das cercanias da pousada, montanhas e cânions e grutas, o vento e a água, experiências distintas para aqueles a quem a introspecção só visitava após alguma quota de esforço físico.
Era preciso passar o tempo até que a noite viesse. Subiu muito lentamente a estrada estreita, saboreando a paisagem, percebendo a elevação da altitude. Como ainda houvesse luz, encostou o carro à beira da estrada e caminhou devagar até a grande laje de pedra que margeava o rio principal. Ainda lhe parecia estranho que pessoas pudessem sentir-se bem em terras planas, sem grandes oscilações, a monotonia materializada em caminho. Aqui, também, a grande extensão naturalmente nivelada parecia fora de contexto. Diferentes piados, lá e acolá, declaravam a troca de turno das aves locais, ocultas pelas folhagens. Vênus apareceu no horizonte lá embaixo, na linha divisória entre os tons de laranja e os de azul. Hora de ir. Lavou o rosto na água escura, estapeou-se em cada face e voltou à estrada.
Conhecia bem a maioria das trilhas e destinações freqüentadas por garimpeiros, padres, estudantes e, agora, turistas, algumas por mais de duzentos anos. Ainda assim lhe faltava a experiência de pisar o ponto culminante, invisível além dos contornos da serra, que sugeriam o perfil de um gigante deitado, placidamente, a fitar o céu.
Ora, havia pouco, a administração decidira proibir qualquer passeio sem a presença de um guia credenciado. Mortes recentes nas cachoeiras próximas. Era, realmente, um infortúnio que bêbados, viciados e imprudentes pudessem macular a paz de um lugar assim, e trazer prejuízo a todos. Pior, era incompreensível que uma instituição religiosa pudesse estranhar ou rejeitar a ideia da morte. Não, não era incompreensível. A morte, como inevitabilidade, era a própria razão de ser das religiões. O medo e a incerteza frente a Ela, o terror humano de enfrentar o desconhecido, eram sua garantia de que haveria, eternamente, fiéis. Mas negócios eram negócios, e o turismo era a fonte de renda no momento. A opção pelos guias espantaria certamente os montanhistas mais conscientes, daquele tipo que se orgulha de causar pouco impacto ambiental, porque era uma gente independente. Centraria, por outro lado, o público entre os domingueiros, exatamente os que faziam daquelas terras um quintal, uma churrasqueira, um boteco verde. Mas eram esses que deixavam dinheiro por lá. Não achava que a questão do público fosse clara para os administradores dali, mas era uma conseqüência inevitável.
Fosse como fosse, que tipo de experiência se poderia ter em contato com a natureza na presença de um desconhecido comandante, a indicar o caminho exato, a dar palpites sobre o que fazer ou não fazer, a roubar-lhe a suprema liberdade de falhar? A impedir-lhe de encontrar seu próprio caminho, as reminiscências daqueles que o precederam? A negar-lhe a própria introspecção? Não. Compreendia perfeitamente as razões para a regra, mas, hoje, não se dispunha a cumpri-la. Por outro lado, não queria afrontar diretamente a casa e as pessoas dela encarregadas.
No acesso deserto, fez rápida parada, logo após a ponte, um horto de pinheiros conhecido como o Banho do Imperador. Ocultou a mochila entre as sombras, retornou ao volante e, em dois minutos, conduziu o carro ao estacionamento, encontrando uma vaga no extremo oposto ao jardim. Instantes depois, jantava sozinho em meio aos hóspedes. Logo, em pequenos grupos, todos se encaminharam ao adro da igreja para observar, fotografar e alimentar o lobo-guará. Ou quase todos. Ele tomou o caminho oposto, por dentro e por trás do antigo dormitório. Desceu a rampa calçada de pedras ao final do muro, cruzou o asfalto e voltou pelas sombras após recuperar seu equipamento. Até a lanchonete no topo do asfalto estava deserta, e chegou incógnito à velha porteira, a partir de onde, seguramente, não haveria mais ninguém àquela hora. Dois quilômetros depois, encontrou assento sob uma árvore, a pouca distância da água que gargarejava saborosamente sobre o fundo de pedra.
Somente no sábado e no domingo os farofeiros passariam por ali, deixando atrás o rastro de destruição, sujeira e restos de alimentos. Sem comida, não se aproximariam animais. Serpentes, talvez. Por precaução, aprumou como pôde o tronco, recostado à mochila, fechando ao máximo o saco de dormir. Uma noite sem sonhos passou como um instante. Começou a caminhada logo cedo, antes do sol. Comeria mais acima, na trilha, longe de olhos humanos. E assim esperava permanecer pelos nove quilômetros seguintes.
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Importado, avançado e caro, o fogareiro falhou. A garrafa de benzina tornou-se, assim, um peso morto, tão inútil quanto a perambulação em busca do combustível, na antevéspera. Compreendeu com certa tristeza que para ele, presentemente, o montanhismo se situava no âmbito da nostalgia, do ideal, não mais do mundo prático. Do contrário, teria tido o cuidado simples de revisar o equipamento e, facilmente, constatado o desgaste nos anéis de borracha que mantinham a pressão necessária à queima. Se os anos de exposição a uma rotina cáustica haviam feito mal a ele, como é que aquelas pecinhas poderiam, pressionadas por porcas e arruelas, suportar incólumes o longo abandono em algum armário? O incômodo da constatação foi aumentado pela necessidade seguinte. Precisava de alimento quente, e teria que providenciar uma pequena fogueira. Acender o fogo era a menor das preocupações. Seria necessário eliminar completamente os vestígios depois, por receio de deixar provas de sua passagem não autorizada. Ainda assim, haveria fuligem extra nos utensílios, e o sono só poderia vir depois de uma limpeza criteriosa. Percebeu-se paranóico a dez quilômetros de distância da alma mais próxima e, com uma risadinha nervosa, deu mãos à obra.
Mal podia chamar de refeição o copo de macarrão instantâneo, ainda que o tivesse incrementado com alguns legumes previamente cortados, uns nacos de queijo firme e até pequenas doses de temperos. Desistira de tentar incrementar o prato com os cogumelos que encontrara na parte mais verdejante da trilha, por não conhecer aquela variedade. Lembrou-se sorrindo que, para os chefes de cozinha franceses, todos os cogumelos eram comestíveis – mas, alguns, apenas uma vez. Como os fai chi, ou hashi, como eram mais comumente chamados, emprestassem à cena um ar estrangeiro, permitiu-se arrotar gostosamente, à moda oriental, aproveitando o manto da solidão. Verteu o restante da água borbulhante sobre as folhas secas de chá e segurou o pote entre as mãos, apreciando o momento. As chamas duraram pouco mais que a bebida. A brisa crescente continuou a carregar para mais além a fumaça e, logo, também a consciência que se destacava do corpo relaxado.
Quando o vento parou, encontrou-se sentado à margem de um largo curso de águas turvas. Pedras escuras despontavam da areia parda, aqui e ali. Seguiu com o olhar um estranho rastro de pegadas frescas, até um homem de seus cinqüenta anos. Reconheceu na figura embriagada o poeta imortal, Li Po. Ou, mais precisamente, o andarilho bêbado que, no futuro, passaria à história como Li Po, o poeta imortal. Tomando de longo graveto, o homem rabiscou na areia molhada e firme uma seqüência de caracteres que ele, curiosamente, conseguia ler, mesmo à distância. Admitiu, de modo paradoxal e incoerente, que não os compreendia pelo conhecimento da língua chinesa, posto que não o possuía, mas porque já conhecesse as linhas do poema:
"Tu me perguntas por que habito a montanha verdejante
Eu sorrio e não ofereço resposta alguma, posto que meu coração não possui amarras.
Qual flor de pessegueiro que flui rio abaixo e se vai para o desconhecido
Eu tenho um mundo isolado que não se situa entre os homens."
Sem sequer pausar para ler o que havia escrito, retomou a caminhada cambaleante até o barco, atracado à margem. Quebrou o graveto ao tentar usá-lo como bengala, e só com a ajuda do barqueiro subiu a bordo.
Ele viu, da margem, quando a embarcação atingiu a correnteza mais ao centro do rio, ganhando impulso. Desajeitado, o ébrio lançou com força o graveto partido pela amurada, perdeu o equilíbrio e mergulhou, afogando-se. Ele buscou, por reflexo, os rabiscos da margem, que acabavam de desaparecer sob uma marola. Acordou totalmente alerta e, respirando profundamente e prendendo o ar o mais que podia, sem abrir os olhos, pôde fazer com que nem uma única impressão se perdesse.
O sol subiu, dissipando a bruma e espantando as trevas dos cumes, das encostas e dos vales, trazendo consigo um dia particularmente claro. Mas, indiferente a ele, não ofereceu nenhuma faísca que amenizasse a escuridão de dentro. Resignado, ele arrumou suas tralhas. Devolveu o local à sua condição original e partiu imediatamente, alternando passos lentos que falavam de imperfeição e impermanência. Nada do que trazia na mochila poderia amenizar o tipo de fome que sentia.
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Incipit ou Um Observador Atento Teria Percebido
Historia CortaUm anti-herói relutante em sua viagem de insônia, desesperança, revolta e ação.