Quem Quer Morrer Sem Cicatrizes?

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O soco veio do centro. A dor que houve foi moral, uma dor de constatação. A primeira articulação do dedo mínimo do oponente parou com maestria depois de comprimir sua boca por apenas meio centímetro. Um centímetro teria cortado também as gengivas. Um e meio teriam partido os dentes da frente. Dois centímetros teriam deslocado a mandíbula. Três teriam resultado em concussão. Assim como fôra, o resultado era um rasgo sob o lábio inferior, outro espelhado na mucosa junto aos dentes. Numa situação real estaria no chão, inconsciente.
Outro colega, cinquentão, que apenas assistia o treino e mantinha sua maleta de primeiros-socorros à mão, higienizou rapidamente o corte, aplicou-lhe um antisséptico e colou sobre tudo uma tira de esparadrapo. Mandou que mantivesse a boca imóvel e pressionasse o local com os dedos, de modo firme e constante, a fim de promover um bom fechamento, reduzindo a possibilidade de infecções e minimizando as marcas. Ele obedeceu apenas em parte. Quem queria morrer sem cicatrizes?
Compreendera as circunstâncias. Haviam ambos golpeado, simultaneamente, à frente. Os braços direitos se tocaram e se controlaram, dando passagem apenas suficiente para a seqüência, pelos braços esquerdos. No momento exato do segundo toque, o oponente angulou minimamente, enquanto ele continuara estático. O ajuste deu ao outro o controle de seus dois braços e o domínio do centro, o caminho livre para a finalização. Não se lembrava de um som para o golpe, nem conseguiu registrar qualquer onomatopéia. Já o alívio por ainda encontrar os dentes com a ponta da língua estaria bem registrado na memória.
Durante os três últimos anos, o foco de seu treinamento havia sido desenvolver uma sólida base. Percebia agora que isso era apenas o primeiríssimo passo – faltava-lhe mobilidade. Transformara suas pernas numa espécie de Linha Maginot: um imponente espetáculo de inutilidade.
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Incipit ou Um Observador Atento Teria PercebidoOnde histórias criam vida. Descubra agora