Marcas

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Encheu as mãos em concha com a água fria e jogou-a sobre o rosto. Em frente ao pequeno espelho, eliminou os vestígios da espuma e dos pequenos fios de barba restantes. Logo abaixo do lábio inferior, encontrou a cicatriz irregular, que lhe pareceu maior. À luz do acontecimento da véspera, pôde ver. Aquela marca não era tanto uma conseqüência de sua falta de habilidade técnica. Mais que isso, atestava sua falta de vontade. Ou ainda, de modo mais específico, a existência de uma barreira que o impedia de ferir. Havia sido, sempre, mais fácil suportar calado as contrariedades, resignar-se, que gritar que já bastava, que dizer que não, que impor sua própria vontade. Existia mesmo certo acordo social, a dizer àqueles que se deixavam conduzir que eram, eles, melhores cidadãos. Percebia que isso não era, sempre ou necessariamente, uma verdade. Faltava-lhe poder. Faltava-lhe a sensação de poder.


Achava que fizera bem em pernoitar ali. Dirigiu-se ao lago mais além do morro, onde se podia alugar equipamento simples de pesca. Com o caniço e o anzol, buscou o ponto mais afastado, fora do campo de visão dos outros pescadores, evitando quaisquer manifestações de camaradagem. Passou o anzol pela isca, uma fatia do minhocuçu que se poderia montar, completamente, usando os outros pedaços que jaziam na latinha que recebera. O ruído discreto da isca mergulhando na água marcou o fim de tudo o que podia se lembrar sobre pescarias, até ali.


A impaciência o fez puxar a vara pela primeira vez. Leves toques provocaram o segundo alarme falso. Da terceira vez, o anzol emergiu limpo. Providenciou nova isca e novo lançamento. Vários outros minutos transcorreram, até que percebeu nova agitação. Provavelmente os peixes a rir-se, lá embaixo. Mas, não. Algo estava preso. Puxou de leve, uma ou duas vezes. Quando o conjunto lhe pareceu firme, lançou os braços, em arco, para trás, num movimento tão desajeitado quanto da última vez, quase trinta anos antes, na infância.


Hoje, como naquela ocasião, ouviu o tapa quando o peixe se estatelou atrás dele, à distância da linha esticada. Pareceu-lhe tremendamente desagradável segurar o corpo escorregadio, que se debatia num ritmo frenético em busca de liberdade, referências, ar. Inversa e paradoxalmente, à medida que introduzia a lâmina no ventre estreito e recortava a carne em direção à mandíbula, a redução abrupta dos espasmos trouxe-lhe alívio. Colocou o corpo já inerte sobre uma pedra, e a pulsação restante cessou quando decepou a cabeça, ainda presa ao gancho de ferro e ao nylon. Começou a abrir as metades, mas a visão dos órgãos não foi lá muito agradável. Como é que se podia chamar aquilo de carne branca, se havia tanto sangue? Ainda assim, cortou um pedaço pequeno e o levou à boca. Depois outro, e outro, e mais outro. Era adequado, justo, que fosse capaz de tirar a vida do corpo que se dispunha a consumir. Sendo assim, obrigou-se a engolir cada pedaço, bem como a saliva que ameaçava transformar-se em cuspe, negação intempestiva do ato.


Lançou os restos de volta ao poço. Animais terrestres voltavam ao pó. Os aquáticos, ao fluido original. Devolveu o equipamento ao atendente, com cara de riso de si mesmo pela falta de jeito com a pescaria, e seguiu para a cozinha, na casa principal. Nenhum alimento o interessava agora, mas um café seria boa desculpa para tirar da boca aquele gostinho.


A velha senhora o recebeu com um sorriso hospitaleiro, traço marcante das boas pessoas dos locais simples das Minas Gerais. Um ou dois dedos de prosa acompanharam a bebida forte, e um ajudante chegou com algumas galinhas. Patas amarradas, pescoços esticados para baixo, ainda não sabiam que seriam o almoço. Ele provocou a velha cozinheira, perguntando se abatia, ela mesma, as aves que preparava. Diante da afirmativa, alegou que nunca o fizera, e não se sabia apto a começar. A senhora riu-se e devolveu a provocação, oferecendo a oportunidade a quem, afinal, devia saber se era homem ou não. Era o segundo peixe que mordia a isca, hoje.


Voltou à hora marcada, quando o cheiro dos temperos frescos começava a se insinuar no ambiente. Encontrou o frango já sobre a tábua de madeira, o bico apontado para o bojo da pia. A mulher lhe disse duas palavras e entregou-lhe a faca, pesada e larga como uma machadinha. Ele encheu os pulmões e pousou a mão sobre o corpo. Quando se deu conta de que ali também havia respiração, sua mão já descia, impulsionando o aço contra o pescoço desprotegido. A força excessiva fez a lâmina cravar-se na madeira além da carne e dos ossos. O tilintar alto mascarou o outro ruído, que parecia ter sido um breve piado. O jorro de sangue tocou a cabeça decepada, que piscou uma última vez. Por reflexo, tirou a mão da massa que estrebuchava sobre a pia. O peixe havia durado bem menos.


A mulher notou que seus lábios estavam brancos, sinal inegável da queda brusca de pressão. Meninos grandes da cidade grande. Despertou-o do transe com um tapinha nas costas e amenizou dizendo que, agora que já sabia ajudar na cozinha, se sentasse no banco próximo e contasse algo sobre seu trabalho. Homens se sentiam mais fortes quando contavam sobre seu trabalho. Mesmo quando mentiam. Principalmente quando mentiam.


Ele percebeu, agradecido, a sensibilidade dela, e sentou-se antes que a tonteira o fizesse cair. Acompanhou todo o preparo da ave, desde a retirada das penas até a disposição final, no prato. Não havia como comer aquilo cru. Por mais saboroso que estivesse o tempero caseiro, naquele dia o gosto da carne foi mais real, menos disfarçado por aparências e pela interveniência de terceiros.


Esperou a digestão ao lado do córrego, o ruído agradável da água eliminando a noção de tempo. Abriu depois um livro, e deixou-se ficar à sombra até o cair da tarde. Era hora de voltar para casa.


Os faróis iluminavam as curvas e os buracos da estrada de terra, vários quilômetros depois. Num dos tantos trechos perdidos do caminho, um latido aproximou-se do carro, que rodava devagar. Um cão vinha morder-lhe o pneu. A irracionalidade do ato sugeriu-lhe que a matança da manhã parara, ainda, num ponto muito baixo da escala evolutiva. Encostou o veículo junto à cerca. A pistola estava no porta-malas, e a legislação não considerava crime disparar arma de fogo em área rural. Saiu. Mas a sombra veio da escuridão e o interceptou a meio caminho. Por reflexo retornou um passo, o braço esquerdo à frente. Os dentes se fecharam a milímetros da parte interna do antebraço, agarrando e retalhando a manga da jaqueta. Sem perceber, passou o mesmo braço ao redor do pescoço do animal, pouco antes de cair para trás.


Não era um cachorro muito grande ou forte. Ainda assim, as duas primeiras estocadas não passaram pelas costelas mais além do couro duro. A terceira, mais baixa e mais perpendicular, penetrou a caixa torácica, e o centro pulsante se dilacerava por conta própria ao redor da ponta do canivete, até que o rosnar se tornasse um ganido, um gemido, um sopro. Até que tudo fosse quietude de novo. Manteve o abraço mórbido por mais alguns segundos, fitando o céu nublado, sentindo os seixos sob as costas. Arrastou a carcaça até a beira da estrada e retomou a viagem.


Assim que o pulso retornou ao normal, foi preciso encostar novamente. Primeiro veio o vômito. Depois, tremores e um choro convulsivo o dominaram por longos instantes. Ao olhar-se no retrovisor, porém, percebeu que o sangue que marcava o rosto e empapava as roupas não pertencia a ele. Limpou-se como pôde, enxugou a cara e seguiu. Estava dado um novo passo. Havia cães em outras espécies animais.


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Incipit ou Um Observador Atento Teria PercebidoOnde histórias criam vida. Descubra agora