A brisa gelada da madrugada soprava no rosto de Tristan Von Trüppendorf, invadindo o capuz e se misturando às diversas outras sensações que dividiam a atenção do rapaz, enquanto seus pés traçavam automaticamente a trilha até sua casa, no final da aldeia.
A confusão do restinho de sono, a maciez dos lábios de Berna e o choque nos olhos dela, uma ponta de orgulho pelo pedido de ajuda, e a excitação do plano que começava a se formar em sua cabeça – Tristan teve que lutar para jogar tudo isso no fundo de sua mente, e aguçar os sentidos para o caso de Hati Donnerstag ter decidido dar mais uma de suas caminhadas noturnas. Nenhum baixinho troncudo e carrancudo saltou das moitas, no entanto, e o rapaz alcançou sua cabana em segurança.
Tirou as botas do lado de fora, para não acordar ninguém, e adentrou pé ante pé no recinto único e amplo, dividido por cortinas e painéis de madeira, que constituía o lar dos Trüppendorf.
Seu esforço se mostrou inútil: a pessoa que ele queria evitar acordar estava sentada à mesa, de frente para a porta, e a vela ao seu lado iluminava braços cruzados e uma carranca.
– Oh... boa noite, mãe – Tristan sussurrou. Foi colocar a bota a um canto, tentando escapar do olhar da mulher alta que seguia todos os seus movimentos. Certamente a vigilância dela não facilitaria o trabalho. – Sem sono também? – tentou, com um ar jovial.
– O que queria a filha do chefe? – perguntou Celina Von Trüppendorf, com frieza.
O moço conteve um suspiro.
– Nada de importante, saber as novidades – quis desconversar, rumando para sua cama. Quem sabe, se ele fingisse que ia dormir, sua mãe não se aquietava também?
– No meio da madrugada? – tornou a mulher, sarcástica.
– De dia o pai dela não deixaria – Tristan encolheu os ombros.
Sua mãe, todavia, permanecia com o olhar de águia cravado nele, determinada a extrair a verdade, e o rapaz considerou que não valia à pena travar aquela batalha. Afinal, em algum momento das próximas vinte e quatro horas ele teria que contar que pretendia fugir de casa.
– Ela está com problemas e achou que eu seria a pessoa certa para ajudar – o rapaz, disse, tentando abordar o assunto de maneira genérica. Seus pais não eram pessoas muito religiosas, mas tratava-se do segredo de outra pessoa, que ele não tinha permissão para revelar.
– Problemas? – Celina alarmou-se. – Ela está grávida?
– QUÊ?! – Tristan exclamou, mais alto do que pretendia, e ouviu-se um rangido no fundo do cômodo. – Grávida? Não! Não que eu saiba... – ele balbuciou. – Não de mim, pelo menos...
– Quem está grávida?! – veio uma exclamação confusa, do mesmo lado do rangido, e um homem mais baixo que Tristan e atarracado se aproximou da mesa. A vela iluminou seus olhos embotados de sono e os cabelos desgrenhados. – Você engravidou uma das filhas do chefe, menino? – ele questionou, severo. – Te criei para ter mais juízo que isso! – bronqueou.
– Não! – protestou Tristan, novamente, vermelho até a raiz dos cabelos. – Não é... esse gênero de problema – falou, alteando a voz para cobrir os comentários que os pais ainda faziam. – Problemas... ideológicos, espirituais – ele disse, sem saber ao certo como definir o impasse de Berna. – Políticos, também. E matrimoniais.
– Pelo jeito, problemas são o que não falta para a garota – ironizou Celina.
Tristan encolheu os ombros, e fez um sinal de concordância. O que podia fazer se era verdade?
– E você vai ajudá-la? – questionou Tretan, o pai de Tristan, diretamente.
– Vou – respondeu Tristan, com firmeza.
– Muito bom – aprovou Tretan, batendo carinhosamente no braço do filho, e virando-se para voltar para a cama. – Pra isso sim eu te criei.
Celina, no entanto, que percebera a nota triste oculta na resposta de Tristan, não se moveu do lugar, esperando o golpe que – seu coração de mãe pressentia – viria em seguida.
– Espero que tenha caprichado, pai, porque não poderá mais trabalhar na minha educação.
Tretan se virou e voltou sobre os próprios passos.
– O que quer dizer? – perguntou, rispidamente.
– Que amanhã eu abandonarei a Aldeia.
Pela primeira vez nos últimos quinze minutos, um silêncio tão absoluto reinou na casa dos Trüppendorf que era possível ouvir os pios de Lauren voltando para casa após uma caçada, lá do outro lado da vila.
De repente, Celina prorrompeu em soluços. Tristan, que já previa essa reação, deu um salto para abraçá-la e tentar consolá-la, ao mesmo tempo em que o Trüppendorf mais velho circundava os ombros da esposa com um braço. Ela, porém, sacudiu os ombros, repelindo a ambos, numa reação dramática bastante gaulesa.
– Eu sabia, eu sabia que essa garota ainda ia te roubar de mim! – ela uivou como uma loba ferida. – Nunca gostei dela!
– Espere aí, mamãe – Tristan raramente a chamava de maneira tão carinhosa, e com isso conseguiu, pelo menos, que ela voltasse para ele seus olhos verdes inundados. – Do jeito que a senhora fala, parece que sou um rapazote apaixonado fugindo para casar. A questão é diferente, é... é bem maior. Não que vocês dois pudessem me censurar se os meus motivos fossem, de fato, românticos – ele lançou.
Chamar os pais de "vocês" e ousar responder-lhes resultaria em alguns dentes quebrados, em outras casas, mas os pais de Tristan eram mais sossegados nesse quesito. Além disso, o que o rapaz falava era verdade: a história de como Tretan desafiara a família para se casar com a escrava gaulesa ainda fazia as mocinhas da Aldeia suspirarem, embora tivesse ocorrido quase duas décadas atrás.
O homem baixinho fez um gesto com o braço, como que afastando a alegação do filho, e rumou para a janela, onde ficou parado, pensativo. Tristan ainda se esforçava para abraçar a mãe que, por fim, o aceitou.
– Pare de chorar, mulher – Tretan disse, após um momento. – Sabíamos que ele iria, cedo ou tarde. O menino sempre teve o mundo no coração. A garota não colocou isso nele, apenas apressou o processo – ele murmurou, e Tristan se espantou, ao ouvir falarem dele, como se não estivesse presente. Sempre se suspeita que os pais conversam sobre nós, mas é esquisito quando as suspeitas se confirmam.
– ...ainda se fosse Una... um pouco de bom senso... mas essa... outra doida, outra doida – foi o que deu para entender da resposta de Celina, intercalada na choradeira.
"Outra doida", Tristan notou. "Quer dizer que o primeiro doido sou eu". Eh, reconfortante quando nem sua própria mãe confia no seu juízo.
Pouco a pouco, porém, os soluços de Celina minguaram, e o silêncio voltou a predominar no recinto. O pai de Tristan deu as costas para a janela, sem se importar com o vento cortante que batia em seu tórax desnudo. Cruzou os braços.
– Você falou de problemas políticos – Tretan disse para o filho. – Imagino que não seja um rapto simples o que você tem em mente.
– Não mesmo – confirmou Tristan, com os lábios crispados.
– Bem, então você vai precisar de ajuda.
Tristan olhou para o pai, surpreso. Os olhos do homem estavam tristes, mas o queixo cerrado indicava determinação e disposição para auxiliar. O rapaz encontrou a mesma expressão no rosto de Celina.
– O que foi? – ela questionou, ríspida. – Sou sua mãe; é meu dever tentar te conservar vivo pelo maior tempo possível.
E os Trüppendorf mais velhos concentraram a atenção no filho, enquanto Tristan narrava seu plano, o coração transbordando de gratidão.
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Naquela noite
Short StoryConto extra de UMA HISTÓRIA BÁRBARA. Situado temporalmente no final da Parte I do livro. Contém SPOILERS; leitura não aconselhada a quem ainda não terminou a Parte I. *** Tristan não esperava ser procurado no meio da noite por sua amiga, desespe...