II - Beowulf

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A manhã ainda não tinha raiado, e Tristan estava novamente na rua. Seu pai ficara de conseguir algum dinheiro para ele, moedas de ouro e outros objetos de valor, enquanto a mãe preparava comida para a viagem. Havia mais uma coisa de que o rapaz precisava para consumar seu plano, no entanto, e que teria que ir buscar pessoalmente: uma distração.

Ele pensou em ir até a floresta e implantar pistas falsas sozinho, mas, dependendo de quem colocassem no comando da expedição de busca aos fugitivos, isso não seria suficiente. Existiam caçadores ali muito melhores que Tristan, que seriam capazes de distinguir os rastros verdadeiros. Ele precisava de alguém que concordasse em, deliberadamente, conduzir todo mundo pelo caminho errado.

Os passos do rapaz se tornavam mais vagarosos, a medida que ele direcionava as forças todas para o cérebro, repassando nomes na mente. Quem concordaria com isso? Quem toparia cooperar com o plano dele sem muitas perguntas? Quem ganharia com o sumiço de Tristan e Berna?

De repente, todas as perguntas convergiram em um nome: Beowulf.

Tristan correu para a casa do amigo. Antes de bater na janela, porém, hesitou: o rapaz era um Donnerstag, no fim das contas. E se o atraiçoasse? E se contasse todo o plano para o tio? Havia entre eles um forte elo de amizade, a camaradagem das batalhas, e até uma dívida, por parte de Tristan, pelo pescoço salvo. Mas também havia em Beowulf – Tristan sabia, pois tinham crescido juntos – ambição.

Tornava-se premente apresentar a história de um ponto de vista em que Beowulf saísse lucrando com a coisa toda.

Apenas uma frestinha da janela foi aberta, após a batida de Tristan. Um rosnado incomodado veio por ela:

– O que quer?

Beowulf, na verdade, não dava mostras de sono. Talvez já tivesse acordado – às vezes ele saía para treinos extras antes do amanhecer – ou talvez nem tivesse dormido. O Donnerstag não falava sobre isso, mas seus amigos percebiam que a recente fuga de Kyrah com o Bardo Vermelho tinha abatido completamente o guerreiro.

– Preciso de sua ajuda num negócio urgente.

– Não estou a fim – veio a resposta de Beowulf, após uma pausa.

– É do seu interesse.

– Não ando interessado em nada, ultimamente.

– Tem a ver com as Brandeburg – tornou o outro, em voz baixa, porém clara, e Beowulf de imediato escancarou a janela.

– Estou ouvindo.

Tristan acenou para que ele se inclinasse. A última coisa que queria era que o pai de Beowulf entreouvisse a conversa, por acaso. Contrariado, Beowulf se debruçou na janela.

– Vou livrá-lo de seu casamento indesejado – Tristan sussurrou. – Vou fugir com Berna.

Os olhos castanho-esverdeados do rapaz mais forte assumiram o tamanho de pratinhos.

– Como assim? Enlouqueceu? O chefe vai te caçar até no Niflheim e refogar sua carne no seu próprio sangue.

Um arrepio percorreu a espinha de Tristan diante da plausibilidade daquela sugestão.

– É aí que entra você – ele sussurrou, entre dentes.

– Eu? E como?

O visitante negou com a cabeça e acenou para que o outro saísse, indicando que não ia soltar mais uma palavra ali à beira da janela. Dali a pouco os madrugadores começariam a acordar na aldeia, e a situação conspiratória em que estavam poderia se tornar perigosa e até um pouco ridícula.

Mas o interesse de Beowulf finalmente fora despertado, e em dois segundos ele estava na rua ao lado do amigo. Tristan acenou para que o grandalhão o seguisse, e eles rumaram para o leste, afastando-se do círculo de casas da Aldeia.

– Eu preciso que você me ajude a implantar pistas falsas, para que a expedição de busca de Heric não nos encontre – pediu o Trüppendorf, tão logo eles tinham deixado para trás a ala dos Donnerstag e atingido terreno seguro na parte da Aldeia ocupada pelos Gulltopr. – E... – ele hesitou. – Também seria bem útil se você se encarregasse de fazer pessoalmente com que a equipe caísse na armadilha.

– Quer que eu me ofereça para liderar o grupo? – rosnou Beowulf, objetivamente.

– Sim. Ninguém desconfiaria das suas intenções – o outro rapaz encolheu os ombros. – Nada mais natural que você quisesse recuperar sua noiva. Simplesmente uma questão de honra.

Beowulf pensou por um instante. Olhou de canto para o amigo.

– Você vai me deixar numa situação bem vergonhosa, já percebeu isso?

– ...pelo menos eu fui um bom amigo e te avisei de antemão? – Tristan tentou se desculpar, com uma careta incerta.

– Porque precisa da minha ajuda. Mas eu não ligo. Isso me deixa o caminho livre para o trono e para Kyrah, não me importa que me considerem trouxa. Depois que eu virar chefe, mostro a eles quem ri por último – o Donnerstag deu de ombros.

Tristan soltou o ar discretamente. Por um instante, temera que o colega fosse recusar. Beowulf continuava mergulhado em suas fantasias do futuro, e falando:

– ...possivelmente vão querer me empurrar Una, mas isso se pode questionar, no fim das contas, elas nasceram no mesmo dia. Uma diferença de minutos não pode ter o mesmo valor que uma diferença de um ano e meio. Não, tenho certeza que será fácil contornar isso – de repente, acordando do devaneio, ele se virou para Tristan. – Você vai fugir a cavalo, eu presumo?

– Lógico.

– Então precisaremos de um cavalo para forjar os rastros – constatou Beowulf, com ar profissional, e eles guinaram em direção aos estábulos, em silêncio.

Quando a floresta engoliu as sombras díspares dos dois amigos e do equino, a coloração acinzentada que prenuncia a aurora já começava a tomar o céu, despertando os vários clãs que compunham a Aldeia, e que estavam destinados a tomar parte no calvário de Berna nas próximas horas, como protagonistas ou como figurantes.

As cortinas do céu se abriam para o primeiro ato, e o plano do Trüppendorf, de difícil execução desde o início, estava prestes a se complicar.     

Naquela noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora