Ao ver a manhã se levantando, cada vez mais forte, ao seu redor, Tristan foi começando a ficar nervoso. "Recolha-se, recolha-se, sol!" ele implorava, em pensamento, enquanto se apressava para decidir com Beowulf que rumo cada um dos dois tomaria.
Após um breve debate, o fugitivo resolveu rumar para o sudeste, em direção à costa. Parte dele tinha esperança – ainda que remota – de encontrar um navio que os levasse para longe de Scandza. Por outro lado, aquela era a direção menos provável para uma fuga desesperada, porque o mar, para quem não tinha barco, era um beco sem saída, e Beowulf conduziria os outros pela direção mais provável: para o norte, onde havia montanhas repletas de cavernas que podiam servir como esconderijo temporário.
Depois de percorrer alguma distância com Beowulf, fiscalizando a implantação de pistas falsas, Tristan pediu licença para voltar à Aldeia, pois precisava cuidar dos outros detalhes de seu plano. Quando o guerreiro de olhos esverdeados confirmou que podia terminar o trabalho sozinho, Tristan deu meia volta e saiu correndo por um atalho na floresta que o levou a outro ponto da Aldeia, diferente daquele em que tinham entrado no bosque.
O rapaz estava preocupado. Sabia que Hati Donnerstag não perderia tempo para concretizar suas ameaças, e talvez até já tivesse se encaminhado à casa do chefe. À luz do dia, Tristan não conseguiria mais sequestrar Berna e passar despercebido. Especialmente não se o tio de Beowulf fizesse as revelações que pretendia. A garota seria colocada sob severa vigilância, e a tarefa de Tristan passaria a ser uma tarefa de titã, que ele jamais conseguiria concluir sozinho.
Então ele saiu da floresta, e a primeira coisa com que seus olhos amendoados se depararam foi a taba dos bardos. Uma pequena tocha fictícia se acendeu sobre sua cabeça, e um sorriso deformou seus lábios cheios, enquanto ele adentrava a taba, onde a maioria dos músicos ainda dormia, alguns cansados de corridas a outras aldeias, para levarem mensagens ou colherem notícias, outros, exauridos de alguma farra.
Tristan saltou sobre alguns bardos sem constrangimento, até chegar em seu pequeno amigo Rincewald, o Sombra, que dormia embrulhado na capa negra da qual nunca se separava. Ele sacudiu o bardo.
– Rincewald, Rincewald!
– ...capim até rima com pudim mas não faz sentido...
– Rincewald, acorda – Tristan se abaixou ao lado do menor e sacudiu-o com mais força. Rincewald abriu os enormes olhos azuis, girando a cabeça para todos os lados, assustado.
– Quer me matar, homem? – ele exclamou.
– Preciso da sua ajuda – sussurrou o guerreiro. – Ainda lembra como usar um arco?
– Vagamente... – Rincewald bocejou, sentando-se e esfregando os olhos. – Por quê? Arranjou encrenca com aqueles bandidinhos vândalos novamente?
– Não... é outra coisa. Vou sequestrar Berna.
– Você vai o quê?
Uma voz alta atrás de Tristan o fez saltar, mesmo estando agachado. Ele se virou para dar de cara com os olhos azuis e saltados do bardo Bjorn Zrymeheim fitando-o com frieza.
Tristan encarou-o um instante, imaginando se a indagação do bardo tinha origem em ciúme ou simples preocupação. Nunca perguntara a Berna quais eram exatamente as relações dela com Bjorn Zrymeheim. Sabia que eles eram amigos de infância – e alguns diziam que mais que isso. Mas havia muita fofoca à toa na Aldeia, não tinham muito com que se ocupar, então se ocupavam com a vida dos outros. Tristan nunca ousara questionar Berna a respeito, e agora, de qualquer forma, não fazia a menor diferença.
Bjorn se sentara também, afastando os longos cabelos louros e emaranhados do rosto.
– Você vai o quê, Gaulês? – repetiu, num tom que pretendia intimidador, muito embora ele, por ser um bardo, tinha consciência de que jamais venceria um guerreiro treinado como Tristan num embate. Bardos largavam o treinamento e trocavam as armas pelas harpas muito cedo.
O rapaz moreno não se dignou a respondê-lo. Acenou para Rincewald e saiu da taba, esperando o amigo do lado de fora. Ah não. Lá vinha o Zrymeheim atrás dele. O bardo alto seguiu Tristan e qo bardo baixinho, fazendo perguntas e ameaças, enquanto os outros rumavam em silêncio para a casa do Trüppendorf. Tinham andado poucos metros, porém, quando Tristan estacou e foi obrigado a virar e encarar o perseguidor, ao ouvir de Bjorn:
– Não vai me dizer? Pois muito bem, vou até agora à casa dela e irei comunicá-la do pouco que eu sei sobre as suas intenções.
– Ela já sabe – retrucou Tristan, friamente. – Foi ela que me pediu.
– Sabe? – retrucou Bjorn, em dúvida.
Tristan corou, porque, tecnicamente, Berna ainda não sabia o que ele pretendia fazer. Mas ela praticamente lhe dera carta branca, diante das circunstâncias, e o guerreiro estava agindo segundo suas possibilidades.
Antes que ele abrisse os lábios para despejar essas justificativas sobre Bjorn, todavia, o bardo já girara sobre os calcanhares e rumava para o centro da Aldeia, para a casa do chefe. Tristan teve que correr atrás dele uns dez passos e segurar seu braço com um puxão. Bjorn encarou-o com raiva.
– Você sabe sobre a religião da Berna? – Tristan disse, rápido, antes que o outro tivesse tempo de abrir a boca. Os olhos saltados de Bjorn cresceram mais ainda.
– Você também sabe – ele afirmou, espantado.
– Lógico que sei. E daqui a pouco a Aldeia inteira vai saber, pela boca de Hati Donnerstag, porque ela mantém a recusa em desposar Beowulf. Tem ideia do que vai acontecer com ela, não é, quando Hati despejar seu veneninho na frente de todo mundo, logo após a sucessão de desgraças que atingiu a Aldeia?
Bjorn empalideceu.
– Agora você me entende – constatou Tristan, sério. – É o único modo de salvá-la.
O bardo levou a mão à cabeça, e coçou-a, perturbado.
– Tudo bem, então – ele comentou, num tom bem diferente da prepotência de minutos atrás. – O que eu posso fazer para ajudar?
Tristan ergueu as sobrancelhas, espantado. Ele dera sorte, a coisa saía melhor que o esperado. Dois bardos pelo preço de um! Tinha suas dúvidas sobre se algum deles sabia atirar, e talvez não fossem de nenhuma utilidade, mas o simples apoio moral, naquele momento crítico, já lhe dava novas forças.
– Vamos para minha casa,conversamos no caminho.
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Naquela noite
Historia CortaConto extra de UMA HISTÓRIA BÁRBARA. Situado temporalmente no final da Parte I do livro. Contém SPOILERS; leitura não aconselhada a quem ainda não terminou a Parte I. *** Tristan não esperava ser procurado no meio da noite por sua amiga, desespe...