VI - O Último Ato

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Um vestido branco, um véu, uma coroa de margaridas. Tristan não conseguiu conter o pensamento de que Berna parecia uma noiva prestes a lhe ser entregue. Exceto pelas mãos atadas com uma corda, é claro, mas um golpe de espada daria conta desse detalhe.

A praça estava lotada e ele não a veria de tão longe, se já não estivesse montado no cavalo, esperando a hora certa para singrar o mar de gente numa cavalgada. Eles já estavam distraídos o suficiente pela dança frenética dos sacerdotes para não notá-lo ali atrás, mas era necessário esperar o clímax, quando a expectativa tornaria todos incapazes de reação ao elemento surpresa.

E, enquanto esperava, ouvindo a música perturbadora do ritual e observando o sol poente avermelhar as roupas brancas dos druidas e do sacrifício, Tristan permitiu-se, pela primeira vez naquele dia, alguns pensamentos sobre o futuro.

A verdade é que, dentro de poucas horas, ou poucos dias, eles poderiam mesmo estar casados. Não pelas leis e tradições da Aldeia, talvez, mas aos olhos da natureza. Acompanhando essa ideia, uma agitação peculiar percorreu todo o corpo do rapaz.

"Calma, guerreiro", ele murmurou mentalmente para si. Berna sequer sabia que ia ser raptada. Ela podia estar contando com isso como sua última esperança – especialmente agora, enquanto a amarravam ao altar e pronunciavam os ditos e ritos de praxe – mas não tinha consentido com nada, tudo fora feito à sua revelia, por questão de necessidade.

— Que o sangue de teus servos manche a castidade dessa traidora! – troou a voz do druida, que tirara o véu de Berna e o mergulhava em sangue de animais.

Casamento, então, nunca nem passara perto de ser discutido entre eles. E na verdade o próprio Tristan jamais havia considerado essa possibilidade a sério, uma vez que Berna tinha sérias restrições matrimoniais paternalmente impostas, nas quais Tristan não se encaixaria nem que o quebrassem e montassem de novo de maneira diferente.

— Que assim seja despedaçada sua pureza!

A segunda proclamação do sacerdote arrancou Tristan de seus pensamentos. Seus olhos seguiram com frieza as mãos do velhote, que arrancou a grinalda de flores de Berna e, despetalou as margaridas, uma a uma.

Enquanto ele fazia isso, uma lembrança enterrada completamente na memória de Tristan boiou para a superfície de seu cérebro, onde ele a pescou. Sobre o dia da iniciação de Berna, a margarida em sua coroa de flores, que o próprio Tristan destroçara acidentalmente com um esbarrão – destroçando, igualmente, suas chances de se casar com ela, de acordo com a superstição do clã Brandeburg. Hunf, com se essas chances alguma vez tivessem existido... até agora.

Observando as pétalas que caíam, algumas sobre a garota, outras levadas pelo vento, ele lembrou também da escolha da margarida em questão. Após um treinamento, o instrutor mandara aos jovens guerreiros que colhessem flores para a coroa da iniciação da princesa primogênita. Tristan a conhecia apenas de vista e de fama, então não tinha muita ideia do que escolher. Olhou em volta, viu um campo de margaridas. Flores simples, sem grande extravagância, mas que era agradável ter por perto, pois embelezavam o que as cercava. Teve a sensação de que elas combinavam com aquela garota. Corando pelo momento de pieguice, ele mesmo assim elegeu a margarida. E depois, quando passou a conhecer Berna, suas impressões se confirmaram.

A última pétala caiu, rodopiando lentamente, a música assumiu ritmo mais frenético, e a multidão estava completamente absorvida no ritual, que se aproximava do ápice. Era hora. Tristan incitou o cavalo, e singrou a multidão pelo caminho mais favorável. As harpas, tambores e cornetas abafaram os ruídos produzidos pela montaria, e só as pessoas em que o guerreiro esbarrava, ao passar, notavam sua presença.

— Vós nos revelastes aquela que vos ofendia com sua infidelidade. Nos livrastes dos perigos e agora retribuímos mandando-a para o mal que é seu lugar. Fazemos isso em vossa honra. Recebam o sacrifício!

A mão do sacerdote ergueu o punhal ao mesmo tempo em que o braço de Tristan erguia a espada, no sinal combinado com Jolie, Angus, e os bardos. Flechas voaram de diferentes direções e cravaram-se com precisão nas gargantas ou peitos dos religiosos mais próximos do altar. A espada de Tristan desceu com um golpe rápido e certeiro sobre o braço erguido do homem que comandava a cerimônia. Antebraço e punhal foram ao chão, e o grito de dor e surpresa do velho misturou-se à exclamação engasgada da multidão.

Tristan pulou do cavalo e empurrou o homem para o lado. Estava levemente enjoado e o coração parecia querer saltar-lhe da boca. Ele se debruçou sobre Berna, que o fitava com espanto, e obviamente sem entender muito bem o que estava acontecendo. Cortou as cordas que amarravam os pés e as mãos dela. Apesar do próprio estado de nervos, sentiu necessidade de tranquilizá-la, de fazer-se forte para apagar o susto que ela acabara de levar.

— Essa aí nunca mais ergue a mão para você – murmurou, num rasgo de humor negro, ao perceber os olhos dela baterem no sacerdote que uivava, abraçado ao coto do braço direito.

— Graças a Deus! – suspirou a garota, por sua vez, e Tristan entendeu que a exclamação procedia do alívio pelo seu pescoço livrado, e não dizia respeito às circunstâncias sinistras em que isso tivera que ocorrer.

Ele a ajudou a descer do altar e montar no cavalo, ainda sob os olhos chocados de todos, deu-lhe uma capa para cobrir as vestes sujas de sangue, e se surpreendeu com a rapidez com que a moça tinha recuperado a lucidez e praticidade, a despeito da tortura mental e incerteza que deviam ter povoado suas últimas horas. Berna parecia adivinhar instintivamente como ele esperava que ela se comportasse para o plano dar certo, e assumia as atitudes necessárias, sem que eles precisassem trocar uma palavra.

Curiosamente, o nervoso que habitara o corpo de Tristan desde a noite anterior também tinha ido embora como por mágica. Ele se sentia plenamente capaz de desempenhar os últimos atos do seu plano, e quando a voz maldita de Hati Donnerstag rompeu o encantamento da multidão, conclamando a turba a detê-los, Tristan se voltou para eles com ousadia, pronto a lutar.

Sabendo que teria o apoio, o auxílio e a cumplicidade de Berna nas batalhas que teria que travar dali para a frente, ele se sentia mais forte. Não importava muito se eles iam acabar se casando, hoje, amanhã, ou um dia. O que importava era que ela era a companheira perfeita para a jornada que ele tinha diante de si.

Eles iam enfrentar o mundo juntos, e, apesar dos muitos percalços da situação que os empurrara para aquela decisão, Tristan não conseguia lamentar o resultado.

FIM

Naquela noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora