IV - O Irmão

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As ruas da Aldeia estavam vazias. Enquanto os bardos, devidamente instruídos sobre quem procurar, haviam saído em busca de reforços, Tristan aproveitou para ir ao estábulo buscar seu cavalo, deixando-o a postos. Quanto mais coisa pudesse ser adiantada para estar pronta no momento crítico, melhor.

Aquele ermo incomodava o rapaz. O sol ainda estava na metade do seu caminho rumo ao centro do céu, e àquela hora, normalmente, o movimento era intenso, nos preparativos do almoço. Homens voltavam da floresta com caça ou lenha de última hora, pessoas se dirigiam ao depósito de cereais em busca de trigo, ou à casa de algum vizinho, para obter um ingrediente faltante ou uma fofoca de sobra. O silêncio e o vazio pareciam anormais, e, com os nervos já afetados pela falta de sono, Tristan viu-se conversando com o cavalo, a fim de manter a calma.

– Pois é, amigo, ainda não sei para onde iremos. A opção mais fácil seria se esconder entre os vândalos, mas eles nos entregariam para o Heric em dois toques, ainda mais se ficassem sabendo do que Berna é acusada. Não, acho que teremos que ir para longe... talvez até para bem longe...

Amarrando o cavalo em uma estaca próxima à porta de casa, Tristan contornou o cubo de madeira atrás de uma tina para colocar água para o animal. Já o havia alimentado fartamente com feno no estábulo; o equino precisava estar em perfeitas condições para a jornada que empreenderiam mais tarde. Quando o rapaz voltava com o balde cheio nos braços, foi surpreendido inicialmente por um rumor de passos, e, virando a esquina da casa, vislumbrou seu clã retornando em massa do centro da Aldeia. Todos os parentes que o viam o olhavam de maneira estranha, antes de entrar em suas casas, e até os pais de Tristan lhe lançaram olhares que misturavam espanto, compreensão e comiseração, ao passarem por ele para adentrar o lar. O rapaz ainda estava inocente quanto ao motivo dessas reações, e chegou a se virar para indagar os pais, mas o grito de seu irmão de sete anos, que vinha numa corrida desabalada, desviou sua atenção.

– Tristan, Tristan! – o menininho magriço ofegou, parando em frente ao rapaz e apoiando as mãos nos joelhos para recuperar o fôlego. – Sua amiga, a filha do chefe, vão matar ela! Parece que ela ofendeu os deuses, e eles mandaram todas aquelas desgraças que estavam acontecendo na nossa aldeia pra castigar.

O estômago de Tristan despencou um palmo. O que ele temia – apesar de saber inevitável – acontecera: o segredo de Berna se tornara público, e agora a missão ganhava mais um grau de dificuldade.

– Quem te disse isso? – Tristan questionou, apesar de saber perfeitamente a resposta.

– Os Donnerstag. Mas ela confirmou. Quer dizer, ela confessou que tem outro deus, até disse o nome dele. Crispo... não é isso, mas é parecido – o menino ergueu olhos pensativos para o irmão. – Eu não sabia que ela era malvada. Sempre que ela vinha aqui pensava que ela era uma moça legal.

Tristan suspirou, sentindo uma onda de indignação invadi-lo, ao ouvir aquelas palavras. Não contra seu irmão, naturalmente; a pobre criança estava só repetindo o que a perfídia de Hati Donnerstag tinha incutido nas mentes tolas e impressionáveis dos aldeões.

– Ela é uma moça legal, Bertran, e não é malvada. Nada do que aconteceu foi culpa dela – Tristan falou, em voz baixa, finalmente depositando a tina em frente ao cavalo.

– Mas então por que querem matá-la? Até o pai dela deixou, eu vi. Aquelas suas outras amigas, as de cabelo cacheado, ficaram chorando e tentando impedir os sacerdotes de pegá-la, mas não conseguiram. Foi triste. Eles levaram ela para uma cabana, aquela onde os sacrifícios ficam esperando, sabe?

– Sei muito bem – disse Tristan, distraído, tentando readequar seu plano à nova realidade. Então baixou os olhos para o irmão. – Como você sabe para onde a levaram?

Um sorriso travesso se abriu no rosto do menino, que não guardava muitas semelhanças com o irmão, tirando o castanho dos olhos e dos cabelos, e a estrutura esguia. Enquanto Tristan se parecia mais com a mãe, Bertran puxara os traços do pai, o que não o impedia de sofrer com o mesmo epíteto do irmão. Tristan era o Gaulês, Bertran, o Gaulezinho.

– Eu segui os sacerdotes. Achei que você ia querer saber – disse, com uma nota esperta e até meio zombeteira no olhar, que fez Tristan corar sem querer perguntar a razão da suposição do menino. – Você vai fazer alguma coisa? – Bertran exigiu saber.

Tristan contemplou o irmão, e de repente sentiu como que uma mão enorme a apertar-lhe o coração.

– Vou sim, Bertran – ele confirmou, suavemente. O sorriso do menino se ampliou.

– Sabia.

A criança dormia como uma pedra, e não tinha ouvido nada dos diálogos que se passaram na pequena casa no dia anterior, nem mesmo os choros altos de Celina. Bertran não sabia que logo não veria mais o irmão mais velho, seu exemplo e a quem admirava, e Tristan não teve coragem de contar para ele. Apesar da diferença de onze anos, eles eram muito próximos, e a perspectiva de deixar o irmão para trás doía até mais que ter que abandonar os pais. Com um novo suspiro, Tristan se ajoelhou em frente ao menininho.

– Bertran, talvez eu tenha que me esconder por algum tempo.

– Eu não vou contar pra ninguém onde você está – o moreninho prometeu, num sussurro conspiratório.

– Claro que não. Mas enquanto isso você vai cuidar da mamãe e do papai, e das nossas cabras, certo? E vai cuidar de ficar mais forte e esperto do que você já é, e não vai ligar para nenhum dos imbecis que te chamam de Gaulezinho, promete?

– Só se eu puder ter um chapéu igual a esse – disse Bertran, pegando o capacete com asas do irmão e colocando na própria cabeça, onde o artefato lhe cobriu até os olhos. Tristan riu e pegou de volta o capacete.

– Feito, vou pedir para o papai te arranjar um.

– Eba! – e o menino se lançou ao pescoço do irmão, abraçando-o com força. Tristan retribuiu o abraço, pela primeira vez sentindo suas convicções vacilarem. Será que estava fazendo certo ao deixar a Aldeia para trás? Abandonar seus entes queridos e partir rumo ao desconhecido, que podia guardar surpresas maravilhosas, mas também ódio, pessoas cruéis e realidades tenebrosas?

Bertran decidiu por ele, desvencilhando-se do abraço do irmão.

– Agora vai logo, que a moça deve estar com medo, coitada.

Tristan sorriu para o garotinho, pondo-se de pé e bagunçando os cabelos dele, enquanto seus olhos batiam em um pequeno grupo que se aproximava de sua casa.

Bertran tinha razão. Aquilo não seria uma jornada em busca de aventuras, mas um resgate. Questão de vida ou morte, na qual Tristan não tinha, virtualmente, escolha. Escolher ficar redundaria em morte, e uma morte que sua consciência jamais suportaria.

Não só a consciência, aliás.

Por uma estranha ligação entre eles, que parecia ter ficado mais forte quando seus lábios se tocaram, a ideia de Berna aterrorizada o aterrorizava também. Tristan sentia uma ânsia por protegê-la que excedia os limites do simples cavalheirismo.

Foi com esse foco que o guerreiro dominou suas emoções e caminhou ao encontro do grupo heterogêneo, formado por dois bardos, outro guerreiro e uma escrava, a fim de recebê-los em sua casa e passar à fase final das confabulações.

Naquela noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora