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Há, porém, um aspecto particularmente caro em que a memória não me atraiçoa. Trata-se da pessoa de Ligeia. Era de estatura elevada, um tanto esguia, e, para o final, mesmo emaciada. Seriam vás as tentativas que fizesse para retratar a majestade, a calma serenidade da sua atitude ou a inexplicável leveza e elasticidade do seu andar. Aproximava-se e afastava-se como uma sombra. Nunca me apercebi da sua entrada no meu gabinete fechado a não ser pela música encantadora da sua doce voz grave, ao colocar-me a mão de alabastro sobre o ombro. A beleza do seu rosto não encontrava rival em qualquer outra mulher. Era o halo de um sonho de ópio: uma visão imaterial, exaltante, mais estranham ente divina que as fantasias que pairavam sobre as almas adormecidas das filhas de Delos. Todavia, os seus traços não tinham aquela forma regular que erradamente nos ensinaram a admirar nas obras clássicas dos pagãos. «Não há beleza requintada», diz Bacon, Lorde Verulam, falando acertadamente de todas as formas e genera de beleza, «que não tenha qualquer singularidade de proporções.» Contudo, embora eu advertisse que as feições de Ligeia não possuíam uma regularidade clássica, conquanto me apercebesse de que o seu encanto era realmente «requintado» e sentisse que havia muito de «singularidade» a impregná-lo, debalde procurava detectar a irregularidade e descobrir a origem da minha própria percepção do «singular». Examinava o contorno da fronte pálida e altiva: era impecável (como é realmente fria esta palavra quando aplicada a uma tão divina majestade!), com uma pele que rivalizava com o mais puro marfim; a amplidão e a serenidade imponentes; a suave proeminência das regiões superiores às têmporas; e a seguir o cabelo, de um negro asa de corvo, lustroso, abundante e naturalmente ondulado, patenteando todo o vigor do epíteto homérico «jacintino».

Ligeia - Edgar Allan PoeOnde histórias criam vida. Descubra agora