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Ligeia - Cap. 1: LigeiaPág. 7 / 20

Sem Ligeia eu não passava de uma criança buscando às apalpadelas entre as trevas da ignorância. Só a sua presença e as suas leituras tornavam vividamente luminosos os muitos mistérios do transcendentalismo em que mergulhávamos. Na ausência do brilho radioso do seu olhar, as letras, cintilantes e douradas, tornavam-se mais baças que o mais satúrnio chumbo. E agora aquele olhar brilhava cada vez mais raramente sobre as páginas cuja leitura me absorvia. Ligeia adoecera. Os seus estranhos olhos brilhavam com uma cintilação demasiado... demasiado resplandecente; os dedos pálidos começaram a adquirir a tonalidade fúnebre de cera e as veias azuis da fronte altiva dilatavam-se e deprimiam-se com as marés da mais ténue excitação. Percebi que iria morrer - e lutei desesperadamente em espírito com o impiedoso Azrael. Quanto à luta da minha apaixonada esposa, foi, para minha admiração, mais enérgica ainda do que a minha. Várias características da sua natureza firme tinham radicado em mim a crença de que, para ela, a morte viria sem os seus terrores; mas não foi assim. As palavras são impotentes para transmitir uma ideia que seja da ferocidade da resistência com que ela se debateu contra as Trevas. Gemi de angústia ante o espectáculo deplorável. Por mais que eu a consolasse e argumentasse com ela, na intensidade do seu furioso desejo de viver de viver, apenas de viver -, quer a consolação quer a argumentação eram totalmente inúteis. Todavia, só no último instante, no meio das mais convulsivas torturas do seu espírito forte, foi abalada a placidez exterior da sua atitude. A voz tornou-se-lhe mais suave, mais profunda, ainda que eu não sentisse desejo de deter-me no estranho significado das palavras que ela calmamente pronunciava. O cérebro girava-me ao ouvir, extático, aquela melodia extra-humana, aquelas ambições e aspirações que mortal algum antes conheceu.

Ligeia - Edgar Allan PoeOnde histórias criam vida. Descubra agora