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Ligeia - Cap. 1: LigeiaPág. 10 / 20

» Morreu; e eu, esmagado, absolutamente convertido em pó pela dor, não pude mais suportar a abandonada desolação de viver naquela sombria e arruinada cidade à beira do Reno. Não me faltava aquilo a que costuma chamar-se fortuna. Ligeia tinha-me trazido mais, muitíssimo mais do que geralmente cabe ao comum dos mortais. Assim, passados alguns meses de penosas deambulações sem destino, comprei e restaurei parcialmente uma abadia, que não mencionarei, numa das regiões mais incultas e menos frequentadas da bela Inglaterra. A lúgubre e solitária magnificência do edifício, o aspecto quase selvagem da propriedade, a muita melancolia e as veneráveis recordações associadas a uma e outra, tinham muito em uníssono com o sentimento de extremo abandono que me levara àquela longínqua e retirada região do país. Contudo, embora o exterior da abadia, com a sua verdejante decadência em redor, apenas tivesse sofrido ligeiras alterações, cedi, com uma perversidade pueril e porventura com uma ténue esperança de assim alíviar as minhas penas, a uma mais que régia exibição de magnificência no interior. Já na infância se tinha criado em mim o gosto por tais fantasias, e agora elas voltavam-me como se se tratasse de uma senilidade provocada pelo desgosto. Sinto, pobre de mim, quanto de loucura, ainda que incipiente, revelavam possivelmente as esplendorosas e fantásticas tapeçarias, as solenes esculturas egípcias, as extravagantes cornijas e mobílias, os insólitos padrões dos tapetes de borlas de ouro! Tinha-me tornado escravo obrigatório do ópio, e os meus trabalhos e projectos haviam adquirido as cores dos meus sonhos. Mas não devo deter-me em pormenores acerca destes absurdos. Falarei apenas daquele compartimento, para sempre abominável, ao qual, num momento de alienação mental, conduzi do altar como minha esposa - como sucessora da inesquecível Ligeia Lady Rowena Trevanion, de Tremaine, de cabelos louros e olhos azuis.

Ligeia - Edgar Allan PoeOnde histórias criam vida. Descubra agora