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Capítulo 2


O relógio da igreja batia as doze badaladas do meio dia no momento exato em que o Santana verde de Henrique estacionou em frente à casa de Otto. A pessoa que desceu do carro vestia uma calça jeans desbotada e uma camisa social branca amarrotada. Henrique tinha 33 anos, quase a mesma idade de Otto, mas se vestia e agia como um adolescente desleixado. Seus cabelos já apresentavam entradas, mas mesmo assim ele os jogava para cima de modo arrepiado, dando-lhe uma aparência não condizente com sua idade.

Os dois amigos se conheciam desde crianças. Henrique, assim como Otto, nunca conheceu seus pais biológicos e os dois cresceram juntos no mesmo orfanato em Santa Rita do Sapucaí. A infância naquele local teria sido muito solitária se não fosse pela amizade dos dois. Quando Otto foi adotado, o amigo permaneceu sozinho no lugar, até completar seus dezoito anos. Essa foi uma época em que eles perderam o contato.

Atingida a maioridade e sem ter mais onde morar, Henrique passou muitas dificuldades até arranjar um emprego de ajudante em uma gráfica. Coincidentemente, essa foi a mesma época em que Otto voltou para Santa Rita para estudar filosofia. Os dois amigos acabaram se reencontrando e fizeram renascer a amizade da infância. Dividiram o aluguel de um apartamento e, quando conseguiu poupar algum dinheiro, Henrique começou o curso de jornalismo. Desde então, os dois nunca mais perderam o contato.

Otto o observava pela janela, relembrando os bons momentos de sua amizade. Assim que o viu descer do carro, correu para abrir a porta. Os dois amigos se cumprimentaram com um forte abraço e tapas nas costas.

— Otto, Otto! Já faz quase um ano que você nem me dá notícias, cara. Achei que já tinha desistido de nossos estudos — Henrique sorria ao encarar o amigo. Otto devolveu o sorriso, que não se encaixou muito bem em seu rosto sério. — Cara, sua aparência tá uma merda! O que rolou durante esse tempo que ficou sumido?

O padre se desvencilhou do abraço do amigo e ofereceu a cadeira de estudos para que ele se sentasse.

— Não aconteceu nada demais — respondeu, enquanto puxava um banco para si. — Estive por aqui mesmo, mas como fui afastado da Igreja, resolvi dar um tempo aos estudos para ver se as coisas esfriavam, sabe?

— Porra, Otto! Já que ficou afastado, aí é que você devia ter investido seu tempo livre nisso! — O amigo correu os olhos pela sala de estar do padre. Além da mesa de estudos, havia somente um sofá encostado na parede à esquerda e uma mesa redonda com quatro bancos de madeira do lado oposto. Sabia que o restante da casa se resumia à cozinha, um banheiro e o quarto de Otto. Nada de TV, computador ou qualquer outro meio de entretenimento. — Que desgraça, cara, o que você ficou fazendo esse tempo todo?

Otto balançou a cabeça indicando a mesa de estudos. Ao lado dela, uma estante se estendia até o teto, repleta de livros.

— Aproveitei para estudar outras coisas — respondeu.

Henrique observou a estante sem curiosidade e pegou o livro que estava em cima da mesa. Seu nome estava gravado na capa.

— É, estou vendo quantas coisas novas você esteve estudando.

— Bem, ultimamente voltei a me interessar pelo assunto — o padre fez uma pausa e passou as mãos pelos cabelos. — Na verdade, eu nunca deixei de me interessar, meu amigo, resolvi apenas dar um tempo.

O livro, que se tratava de um estudo sobre casos paranormais, foi escrito pelo próprio Henrique. Atualmente ele era dono de uma pequena editora em Pouso Alegre e dirigia um jornal impresso que circulava pela cidade. O amigo sempre nutriu interesse por casos sobrenaturais e, por isso, dedicou boa parte de seus estudos a esse assunto. Quando Otto sentiu sua fé vacilar, recorreu a ele e, juntos, começaram a realizar diversas investigações e estudos sobre a vida após a morte, na frustrante tentativa de comprová-la. O livro que ele estava segurando fora publicado no ano anterior e tinha diversas contribuições do padre.

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