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Quando Otto e Henrique chegaram à Santa Casa, o local estava um caos. Do lado de fora eles já ouviram os gritos histéricos de alguém que se encontrava em profundo desespero. Uma ambulância estava parada na porta do lugar com as luzes da sirene acesas. Os dois amigos se apressaram pelos corredores até chegarem no quarto onde estava o moribundo.

Diversos enfermeiros se amontoavam ao redor da maca, tentando imobilizar o paciente que se debatia. Otto reparou nos respingos de sangue espalhados pelo piso branco. O homem na maca empurrava, arranhava e tentava morder todos que estavam ao seu redor, demonstrando uma força impossível para alguém em seu estado físico.

A porta do banheiro do quarto se escancarou e Jonas saiu de lá. Ele pressionava uma toalha empapada de sangue em seu rosto. Assim que viu o padre, correu em sua direção, ignorando Henrique.

— Otto! Ele surtou! — O enfermeiro tirou a toalha de seu rosto e Otto entendeu porque ela estava ensopada de sangue. Em sua bochecha estavam dois cortes profundos em semicírculos, que faziam a carne quase se desprender do rosto. Durante os poucos segundos que ele afastou a toalha do rosto, o sangue começou a vazar, preenchendo os sulcos e escorrendo por seu rosto. Otto pensou que aquele pedaço de pele fosse se despregar do rosto do enfermeiro, mas ele logo o cobriu novamente com a toalha. — O desgraçado acordou sussurrando um monte de palavras incompreensíveis e eu fui imediatamente ligar para o senhor. Logo depois que desligamos, eu aproximei meu rosto do dele, na tentativa de ouvir melhor, já que ninguém conseguia entender o que ele dizia... foi aí que ele me mordeu. Todos ficaram sem reação no momento em que eu comecei a gritar, mas logo vieram me ajudar. Ele se debatia com tanta força, que foram necessários quatro enfermeiros para imobilizá-lo. Já injetamos outra dose de calmante em seu soro, mas não adiantou nada.

Atrás de Jonas, o moribundo continuava se debatendo e gritando. Otto pôde ver as veias estufadas em seu pescoço, sangue escorria por seu nariz e boca. O rapaz já não parecia mais um ser humano, mas sim uma criatura bestial. O enfermeiro falava alto para conseguir se comunicar com o Padre.

— Já estamos preparando a ambulância para levá-lo para Itajubá, mas se ele não se acalmar, acredito que...

Nesse momento, os dois enfermeiros que seguravam as mãos do homem foram empurrados para o chão e ele logo se libertou dos outros dois que imobilizavam suas pernas. O homem se jogou para fora da maca e correu em direção ao padre. A agulha de soro presa em sua veia de desprendeu violentamente, deixando um rasgo em seu braço. Seus olhos estavam vidrados e ele continuou gritando enquanto seu corpo raquítico se movimentava como uma assombração.

Otto instintivamente levantou os braços para se proteger do ataque, mas o homem passou direto por ele e seguiu em direção a Henrique, que começou a se afastar de costas, até ir de encontro à parede, ficando sem saída. O moribundo começou a cambalear e caiu de bruços no chão a três passos de alcança-lo. Sangue começou a se esvair de suas narinas, espalhando-se pelo piso.

Os três homens ficaram sem reação por alguns segundos, e o quarto foi tomado por silêncio enquanto a poça de sangue aumentava. Por fim, Henrique quebrou o silêncio:

— Mas que merda foi essa? — Ele ainda estava com as costas apoiadas na parede, com os olhos arregalados e respiração ofegante.

Um dos enfermeiros correu até o corpo caído e checou seus pulsos.

— Ele está morto.

A toalha que Jonas pressionava contra o próprio rosto começou a pingar e ele nem percebeu. Ainda estava estupefato, não conseguia desviar os olhos do corpo caído no chão. Otto se aproximou e apoiou as mãos no ombro do enfermeiro.

— Jonas... você precisa cuidar desse corte. O homem está morto, deixe que os outros cuidem do corpo, vá tratar desse ferimento.

Finalmente ele encarou o padre e piscou os olhos várias vezes, como se acabasse de acordar.

— Certo... certo, é melhor pedir para alguém limpar isso aqui e dar alguns pontos. Com licença... — Ele saiu pela porta sem dizer mais nada.

— Otto, o que foi isso que acabou de acontecer? — Henrique voltou a perguntar.

O padre se aproximou do corpo caído, tomando cuidado para não pisar na poça de sangue, e o observou. Os olhos do cadáver ainda estavam abertos e Otto percebeu que mantinham a mesma expressão vidrada de quando ele se levantou da maca. As pupilas estavam tão dilatadas que era quase impossível adivinhar a cor de sua íris. Aquele olhar demonstrava medo, mas não um medo qualquer, o homem estava assombrado, como se estivesse em contato com coisas incompreensíveis pela mente humana.

Otto fechou as pálpebras do homem e, com o sinal da cruz, fez uma prece silenciosa. Sua fé podia estar abalada, mas ainda assim achou necessário interceder por sua alma.

— Eu não sei — respondeu ele. — Mas vamos descobrir.

Os outros enfermeiros se aproximaram do corpo e começaram a organizar a situação. Um deles se virou para Otto e disse:

— Padre, nós cuidaremos de tudo agora, vocês podem ir embora se quiserem.

— Certo, meu filho. Muito obrigado. — Ele se virou para a porta do quarto e saiu. Henrique foi atrás dele.

— O que vamos fazer agora?

— Já falei, vamos descobrir o que está acontecendo. Vamos descobrir onde fica esse Vale dos Sussurros e vamos até lá para entender por que esse pobre coitado morreu.

— Mas você não acha melhor esperar?

— Nós não temos tempo a perder, Henrique.

— Talvez eles descubram alguma coisa sobre aquele homem, você não acha?

— Se eles não descobriram nada até agora, não vai ser depois de sua morte que descobrirão. As respostas para essas perguntas estão apenas em um lugar, e é para lá que nós vamos.

— E a causa da morte? Não seria melhor esperarmos apenas por isso?

Otto estancou seus passos e se virou para encarar o amigo. Seu rosto mantinha a expressão séria e impassível, mas uma ruga se formou em sua testa quando respondeu:

— Você acha que isso importa? Desidratação, derrame, infarto, qualquer que seja a resposta... você realmente acha que importa? As pessoas aqui não se interrssam pelo que aconteceu. Esse rapaz será enterrado como indigente e nunca mais ninguém ouvirá falar nele. Esse homem veio até aqui e chamou por meu nome! Acredito que ele já tenha cumprido sua missão. Sinto que tenha morrido, mas não podemos deixar que sua morte seja em vão. Temos que encontrar onde fica esse vale maldito e descobrir o que está acontecendo! Seja o que for, eu sinto que não é algo que possa esperar. Temos que ir agora! — Otto fez uma pausa e encarou o amigo: — Eu só quero saber uma coisa: você ainda está, ou não, comigo?

Henrique o encarou e forçou uma careta, como se estivesse ofendido.

— É claro que estou, Otto!

— Muito bem, então vamos! — Ele se virou novamente e caminhou para a rua.

O Vale dos SussurrosOnde histórias criam vida. Descubra agora