PRIMEIRO DIA
27/11/1999
Sábado
Capítulo 1
Otto Weergang estava sentado em sua mesa de estudos quando tocaram a campainha. Estava distraído, observando a paisagem pela janela que se abria à sua frente. Pedra Branca se estendia até os limites do grande monte que dava o nome à cidade. O sol nascia atrás do pico, lançando sombras sobre a estrada que serpenteava seu caminho através do local. A vista era tão linda que poderia estampar um cartão postal de visitas.
Seus dedos tamborilavam a mesa de mogno ao lado do livro que tentava ler. A campainha tocou novamente, despertando-o de seus devaneios. Otto observou o relógio, eram oito horas da manhã, ninguém costumava incomodá-lo tão cedo assim. Retirou os óculos de leitura, deixando-o apoiado sobre o livro e se levantou para espiar pela janela. À sua porta estava Jonas, o enfermeiro que trabalhava na Santa Casa. O rapaz parecia agitado, esfregando as mãos e balançando as pernas sem parar. Antes que pudesse atendê-lo, a campainha tocou mais uma vez.
— Já vou! — Gritou Otto, dirigindo-se à porta. — Bom dia, Jonas. Algum problema?
— Bom dia, padre. Desculpe incomodá-lo tão cedo, mas aconteceu algo que o senhor precisa ver.
Otto, do alto de seus 1,90m, tinha que inclinar sua cabeça para baixo para encarar o rapaz. O padre franziu o cenho ao perceber as gotas de suor que brotavam na testa de Jonas. Por fim, ele abriu a porta por completo.
— Espere eu me arrumar. Enquanto isso, entre e conte-me o que aconteceu.
— Padre, acho melhor o senhor se apressar — Jonas esfregou a mão na cabeça, encabulado com a situação. Mas, ao perceber que Otto não ia a lugar algum sem vestir seu terno, entrou na casa.
O padre entrou no quarto para se trocar e o enfermeiro ficou aguardando ao lado da mesa de estudos. Curioso, observou o livro de capa azul que estava ao centro da mesa:
O Outro Mundo
Um estudo sobre os maiores fenômenos paranormais do Brasil
Henrique S. Vieira.
— Vamos, Jonas, conte-me logo o que aconteceu — a voz grave e séria de Otto veio através da porta do quarto.
— Bem... eu tinha acabado de chegar na Santa Casa hoje de manhã quando o carro do Francisco, aquele senhor que trabalha ali no armazém da esquina, parou lá na porta, cantando os pneus. Ele saiu gritando por socorro, quando eu e mais dois funcionários fomos até lá. A primeira coisa que vi foi o Francisco tentando tirar um corpo do banco de trás do carro. Eu pensei que ele estava carregando um homem morto, juro por Deus, mas quando me aproximei e chequei seus pulsos, vi que não.
— Vocês conhecem o homem?
— Nunca o vi na vida. Francisco disse que estava seguindo pela MG-347, indo para Pouso Alegre, quando, do nada, um vulto saiu do meio do mato e caiu no acostamento. Ele freou o carro na hora, com medo de atropelar o maluco, e foi socorrê-lo. O homem estava inconsciente e cheio de escoriações pelo corpo. Quando eles chegaram na Santa Casa, eu vi os primeiros sinais de desidratação, e qualquer leigo que encostasse as mãos no rosto do cara saberia que ele estava queimando de febre.
— Ele falou alguma coisa? — Otto se observava no espelho enquanto terminava de ajustar seu colarinho romano. Era jovem, com cabelos negros bem cortados e olhos verdes intensos. O rosto já estava barbeado e mantinha uma expressão de seriedade o tempo inteiro, como se jamais pudesse rir de uma piada.
— De início, não. Quando chegaram na Santa Casa, ele ainda estava inconsciente. Depois de um tempo que ligamos o soro nele e começamos a cuidar dos ferimentos, ele foi acordando e, aí sim, começou a murmurar um monte de coisas incompreensíveis.
Otto saiu do quarto vestido em seu terno negro e impecável.
— E por que então precisam de mim? — Por um momento, Otto achou que o rapaz de quem falavam estava à beira da morte e pedia a extrema-unção. Mas o que Jonas falou a seguir fez os pelos de sua nuca se eriçarem.
— Padre, dentre os vários devaneios do homem, ele gritava por seu nome. Essa era a única coisa compreensível que ele dizia.
***
Pedra Branca era uma cidade pequena localizada ao sul de Minas Gerais. Não tinha mais de cinco mil habitantes e suas ruas sequer eram asfaltadas. Otto chacoalhava de um lado para o outro dentro do carro de Jonas enquanto trepidavam pelo cascalho. Insistira em ir a pé, mas a pressa do enfermeiro fez com que usassem o carro.
A Santa Casa era o mais próximo de um hospital que os habitantes da cidade tinham. O local poderia facilmente ser confundido com uma casa qualquer, se não fosse o grande aviso acima da porta de entrada com a cruz vermelha. Caso algum paciente precisasse de cuidados especiais, deveria ser levado para Itajubá, a cidade mais próxima, pois o local não tinha condições para tratamentos de maior complexidade.
Jonas saltou para fora do carro e guiou o padre pelos corredores vazios do local. Eles pararam diante de um quarto onde um moribundo estava deitado em uma maca com o soro ligado na veia. O homem soltava gemidos agonizantes enquanto dois enfermeiros cuidavam de diversos ferimentos por todo seu corpo.
— Os ferimentos são o de menos — Jonas se aproximou do padre. — O pior é a condição de desidratação em que ele se encontra. Se Francisco não estivesse passando na estrada naquele momento, provavelmente este homem já estaria morto.
Otto se aproximou e observou o homem de perto. Seus olhos fechados estavam fundos, a pele ao redor estava ressecada e escura. Um dos enfermeiros estava com um pano em mãos, molhando-o em uma bacia de água e passando sobre a testa do rapaz. Otto observou que ele tremia com espasmos constantes.
De repente, os espasmos cessaram e, quando Otto voltou seu olhar para o rosto do homem, estava sendo encarado por dois olhos arregalados injetados de sangue. Suas pupilas estavam dilatadas, não deixando espaço para íris. O moribundo moveu seu braço com velocidade, derrubando a bacia de água das mãos do enfermeiro, e agarrou o pulso do padre.
— Otto Weergang! — Sua voz era rouca e saía como chiado de sua garganta. — Me ajude...
Os enfermeiros começaram a gritar alguma coisa ao redor, mas Otto não prestava atenção, estava fixado no homem à sua frente.
— Está sentindo muita dor, meu filho?
— Não... a dor não é no corpo, mas sim aqui — ele apontou um dedo para a própria cabeça. — Faça eles sumirem, padre! Por favor, faça...
Jonas se aproximou da maca segurando uma seringa.
— Vamos sedá-lo — disse ele — o monitoramento cardíaco está muito acelerado, ele está próximo a um colapso.
— NÃO! — Gritou o homem, começando a se debater. — Não posso dormir! Os pesadelos... eles vão me matar! — Ele se virou para Otto, seu olhar demonstrava profundo desespero e sua mão apertou ainda mais o pulso do padre. — Por favor! POR FAVOR! O vale... o vale dos sussurros...
—Como eu posso ajudar, filho? Do que você está falando?
— Vá ao Vale, padre. Precisamos da sua ajuda... precisamos acabar com os pesadelos!
Os outros dois enfermeiros seguravam o homem que se debatia enquanto Jonas encaixava a seringa no tubo de soro, preparando para a injetar o calmante.
— NÃO! PAREM COM ISSO! O VALE! Otto, não deixe de ir ao vale dos suss...
Pouco a pouco o calmante começou a fazer efeito e os olhos do homem se fecharam. Sua mão se afrouxou, liberando o pulso do padre. Otto assistia a tudo aquilo incapaz de dizer uma única palavra. Seu rosto continuava sério e indecifrável. Por dentro, ele estava apavorado.
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O Vale dos Sussurros
Mistério / SuspenseQuando um homem à beira da morte chega na cidade de Pedra Branca dizendo palavras desconexas sobre um lugar chamado Vale dos Sussurros, Otto Weergang, um padre em conflito com sua própria fé, decide investigar esse mistério no momento em que ouve o...