— Otto — a voz de Henrique o chamava —, me ajude...
O padre levantou sua cabeça e viu o amigo a alguns passos de distância. Estava deitado de costas na terra.
Otto se levantou com esforço e começou a caminhar em sua direção. Ainda estavam na trilha de terra, mas algo estava diferente. O céu estava amarelado, talvez estivesse amanhecendo.
Não, não é isso...
A iluminação da trilha era artificial demais. Aquilo parecia o palco de um teatro, uma peça macabra. A cada passo que dava, Henrique parecia mais distante.
— Otto, por favor — a voz do amigo era gorgolejante, como se estivesse se engasgando com alguma coisa —, me ajude!
Onde estou?
O padre começou a correr. Tentou chamar pelo amigo, mas não conseguia dizer nada. Quanto mais ele corria, mais Henrique se afastava. O amigo começou a tossir, e Otto percebeu gotas de sangue sendo cuspidas no ar.
— O-Otto... v-você me deixou — ele engasgou novamente e sangue jorrou de suas narinas e boca enquanto tentava completar a frase — m-morrer...
Por fim, ele parou de engasgar, ficando imóvel no chão. Nesse momento, os passos do padre começaram a ter efeito e ele cobriu a distância até o amigo rapidamente, como se estivesse andando em uma esteira em movimento.
O rosto de Henrique estava salpicado de sangue e seus olhos estavam fechados. Otto o segurou em seus braços, chamando inutilmente por seu nome. O sangue ainda escorria por suas narinas, mas não havia mais respiração ali.
— Quem são esses? — Uma voz rouca perguntou de algum lugar.
Otto largou o rosto do amigo falecido e procurou de onde vinha aquela voz.
— Não sei, mas acho que estão mortos... — Respondeu outra voz, mais jovem.
— Quem está aí?! — Otto gritou, sem saber para onde dirigir sua pergunta.
— Lúcio! — O mais jovem chamou. — Este aqui ainda está vivo, mas tem um ferimento feio em sua cabeça.
— Quem está... — uma mão agarrou o tornozelo do padre antes que ele terminasse a pergunta. Ao olhar para baixo, viu Henrique. Suas pálpebras estavam abertas, revelando dois olhos amarelos de serpente. Sua boca se escancarou e, sem movimentar os lábios, um sibilo demoníaco escapou dali:
Bem-vindo ao Vale, padre!
Em um impulso, Otto chutou o amigo para longe e tentou correr, mas a voz rouca que ouvira antes falou novamente, como se estivesse bem ao seu lado:
— Olha só, Elias, esse aqui é um padre — Otto sentiu algo se aproximando de seu rosto e a voz soou como se gritasse em sua orelha: — E ele também está vivo.
Otto abriu os olhos e viu que estava de bruços em um chão de terra. Assustado com a mudança repentina de cenário, moveu-se bruscamente, tentando se levantar.
— Opa! Parado aí, meu amigo! — A voz rouca exclamou logo atrás dele, fazendo com que estancasse seus passos. — Vai virando para cá, devagar... eu disse devagar!
Quando terminou de se virar, viu um velho com uma longa barba branca apontando uma espingarda para sua cara. Ainda estavam na trilha de terra que percorrera com Henrique na noite passada. Já não chovia mais e o dia estava amanhecendo. Ele enxergou o corpo do amigo tombado no chão, logo atrás do homem com a arma. Ao seu lado, estava de pé um rapaz assustado, provavelmente da mesma idade de Otto, observando o que acontecia.
— Muito bem — o homem com a espingarda se aproximou —, não é todo dia que recebemos visitantes por aqui. Agora me diga, quem é você?
Otto estava sem palavras, demorou a entender que estivera em um sonho, nada do que aconteceu era real. Olhou novamente para Henrique e ficou contente por ver que ainda respirava. Seu amigo não estava morto. O velho armou a espingarda e a aproximou ainda mais do padre.
— Olha aqui, não pense que só porque você é um padre que eu não puxarei o gatilho. Responda minha pergunta!
— Não! — Otto levantou os braços. — Não atire! Meu nome é Otto Weergang, e eu prometo responder a qualquer pergunta que fizer, mas agora eu preciso que vocês ajudem aquele homem — ele indicou Henrique com um movimento de cabeça —, caso contrário ele vai morrer!
O velho encarou o rosto sério do padre por alguns segundos e analisou o estado de destruição do terno que estava usando. Sem abaixar a arma, ele cuspiu no chão e disse:
— Eu não confio em gente de fora, acho melhor você mesmo pegar o seu amigo e voltarem exatamente para o lugar de onde vieram!
— Por favor, não faça isso. Ele vai morrer!
— Isso não é problema meu.
— Lúcio — o rapaz mais jovem se aproximou —, nós não podemos deixar aquele homem aqui, veja o estado dele! Não conseguirão andar nem vinte passos antes de desabarem novamente.
— Não é problema meu — repetiu o velho sem alterar seu tom de voz.
— Mas eu acho que é problema meu! Se você não quer ajudar, eu ajudarei!
— Não ouse me desobedecer! — O velho desviou a arma de Otto, apontando-a para o rapaz.
— Então atire em mim — disse ele em tom de desafio, dirigindo-se para o corpo de Henrique, ignorando a arma apontada. Ele se agachou e jogou o corpo em seus ombros como se não pesasse mais que um saco de arroz.
Balançando a cabeça em tom de reprovação, o velho finalmente abaixou a arma.
— Esse garoto perdeu completamente o respeito pelos mais velhos — foi atrás dele e fez um sinal com as mãos, ordenando que Otto o seguisse. O mais jovem retirou um cantil de sua cintura com sua mão livre e o jogou para o padre:
— Beba. Vamos seguir por um longo caminho e não quero ter que carregar outro corpo.
— Muito obrigado pela ajuda — o padre mancava, tentando manter o mesmo ritmo dos dois homens. Tomou toda a água do cantil em dois longos goles e enxugou a boca. — Vocês podem me dizer onde exatamente estamos?
O velho soltou um bufo de escárnio e respondeu:
— Duvido muito que vocês chegariam ao Vale dos Sussurros sem saber para onde estavam indo!
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O Vale dos Sussurros
Детектив / ТриллерQuando um homem à beira da morte chega na cidade de Pedra Branca dizendo palavras desconexas sobre um lugar chamado Vale dos Sussurros, Otto Weergang, um padre em conflito com sua própria fé, decide investigar esse mistério no momento em que ouve o...