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O homem dormia há mais de uma hora. Otto permaneceu ao seu lado, esperando que talvez acordasse novamente, mas nada aconteceu. Seu sono parecia agitado, pois os globos oculares se moviam constantemente por trás das pálpebras.

Jonas se aproximou e entregou um copo descartável para Otto.

— Beba. Você não vai querer ficar igual a ele.

— Com certeza — o padre respondeu sem desviar os olhos do moribundo. Pegou o copo e bebeu a água em dois goles.

— Não sei como o senhor aguenta ficar de terno nesse calor, padre.

— Você ouviu o que ele disse? — Otto se virou para Jonas, ignorando sua observação. — Vale dos Sussurros. Isso quer dizer alguma coisa para você?

— Acho que sim, tenho certeza que já ouvi esse nome, mas não lembro onde.

Otto assentiu com a cabeça. Também já ouvira o nome.

— Padre, o sedativo que demos a ele é muito forte. Provavelmente ele vai dormir pelo resto do dia, não há muito que o senhor possa fazer por enquanto — ele fez uma pausa e o encarou. — Você o conhece?

— Não. Pelo menos, não que eu me lembre.

O monitor de batimentos cardíacos apitava em intervalos curtos ao lado da maca. Jonas apontou para ele e disse:

— Se não conseguirmos estabilizá-lo, é possível que ele tenha que ser transferido para outra cidade. Não podemos fazer mais nada por aqui. Vá para casa descansar, Otto.

— Muito bem — Otto se levantou —, se ele acordar, por favor, me avise.

— Certo — Jonas começou a esfregar suas mãos. — Padre, esse homem estava muito desidratado, ele não estava falando nada com nada, talvez estivesse apenas delirando, é um sintoma comum em pessoas com alto nível de desidratação. Além do mais, aquelas pupilas dilatadas podem significar que ele ingeriu alguma toxina, talvez alguma planta alucinógena. Precisamos fazer mais alguns exames para descobrir, mas acredito que ele acabará sendo transferido.

O padre encarou o rosto do enfermeiro e soltou um suspiro.

— Mas nada disso explica como ele sabia meu nome — disse ele, voltando-se para a porta de saída. — Qualquer novidade, não se esqueça de me avisar.

— Pode deixar. Quer uma carona?

— Não precisa, vou caminhando.

O caminho de volta para sua casa passava por uma subida íngreme e não parecia tão curto quando era percorrido a pé. Diversos pensamentos ocupavam a cabeça do padre. Ultimamente ele vinha tendo problemas em relação à sua fé e, por isso, fora afastado de suas atividades dominicais. Agora tinha todo o tempo disponível para investigar aquela situação.

Otto cresceu sem nunca ter conhecido seus pais. Lembrava-se pouco de sua infância, e seu passado era um mistério. Durante mais de dez anos de sua vida, viveu em um orfanato religioso e sua educação foi uma das razões pela qual decidiu seguir a vida eclesiástica. Aos doze anos de idade, foi adotado por uma família cristã que morava em Pedra Branca. Júlio e Isabela, seus pais adotivos, o criaram com todo carinho e educação que um filho deve receber, de modo que Otto aprendeu a amá-los como a família que nunca teve. Quando completou seus dezoito anos, Otto decidiu cursar filosofia em Santa Rita do Sapucaí e, em menos de dez anos, já estava formado e completara o seminário, sendo ordenado padre.

Há três anos, Otto presenciou um fato que mudou completamente o rumo de sua fé. Pedra Branca sempre fora uma cidade pacífica, com pouquíssimos casos de violência. A única cadeia existente na cidade abrigava somente alguns habitantes ocasionais que se envolviam em brigas de bares. Uma exceção a essa regra ocorreu justamente no dia do aniversário de trinta anos de Otto. Era um domingo, e ele seguia para a casa de seus pais adotivos logo após a celebração da última missa do dia. Ao chegar na casa, estranhou o silêncio anormal do local, e logo reparou nas manchas de sangue espalhadas pelo chão. Ao segui-las, encontrou primeiro o corpo de Isabela com um furo na testa e sangue espalhado pelo rosto sem vida. Logo depois encontrou o corpo do pai no quintal da casa. Júlio segurava uma arma em sua mão e seu cérebro estava espalhado pelo terreiro.

O resultado da perícia realizada pela polícia foi o de crime passional. O marido deveria suspeitar que a mulher o estava traindo e, por isso, matou-a com um tiro na testa e logo depois se suicidou. Otto jamais acreditara naquela conclusão, conhecia bem seus pais adotivos e sabia que eles jamais fariam algo do tipo. Aquele crime foi forjado para parecer um crime passional, mas o porquê e por quem ele jamais chegou a descobrir. Seus pais não tinham inimigos e eram boas pessoas, não fazia sentido alguém querer vê-los mortos.

Depois desse dia o padre sentiu sua fé ser abalada. Não conseguia entender a crueldade existente em um ser humano capaz de cometer aquele assassinato. Tentou continuar seguindo a vida eclesiástica, mas se questionava constantemente sobre a existência de Deus ou a vida após a morte, pois sentia-se tremendamente abalado pelo contato direto com a morte de pessoas tão próximas. Essas dúvidas foram se acumulando em sua cabeça e foi aí que ele começou a se interessar pelas investigações paranormais. Queria descobrir evidências da existência de algo além da realidade. Sentia que só assim poderia ter sua fé de volta. Não conseguia aceitar a ideia de nunca mais ver seus pais adotivos novamente. Não conseguia entender que tipo de Deus poderia permitir que aquilo acontecesse com pessoas tão boas, que o acolheram debaixo do próprio teto, sustentando-o e educando-o com amor, mesmo não sendo de seu próprio sangue.

Nos três anos que se seguiram, Otto acompanhou e investigou diversos casos de eventos paranormais nas cidades do sul de Minas Gerais, mas nenhuma chegou a dar algum resultado satisfatório. A igreja obviamente se incomodou com as pesquisas do padre e sua falta de interesse pelo clero. Por isso, afastou-o momentaneamente de suas atividades eclesiásticas.

Agora Otto sentia que estava diante de um novo mistério que talvez pudesse solucionar suas dúvidas. Jamais, em nenhum dos casos investigados, esteve de cara com algo que o envolvesse diretamente. Aquele moribundo sabia seu nome completo, e Otto não se lembrava de conhece-lo de lugar algum. Talvez este seria o seu teste de fé e, por isso, arriscaria ir a fundo para descobrir o que era o Vale dos Sussurros, que estranhamente lhe soava tão comum.

Ele estava tão perdido em seus pensamentos que mal percebeu que já estava na porta de sua casa. Assim que entrou, se dirigiu ao telefone e discou o número que já estava gravado em sua memória.

Alô? — Disse a voz do outro lado da linha.

— Henrique?

Isso mesmo, quem fala?

— Sou eu, Otto. Como estão as coisas?

Otto! Quanto tempo, cara. Não tive notícias suas nesse último ano, desistiu de me ajudar nas novas pesquisas?

— Bem, eu estive um pouco ausente mesmo, eu sei. Mas depois eu explicarei tudo. Me diga uma coisa, você está muito ocupado por esses dias? — Otto olhou o calendário em cima de sua mesa: sábado, 27 de novembro de 1999. O escritório de Henrique ficava em Pouso Alegre, ele poderia ir naquele mesmo dia para Pedra Branca caso estivesse livre.

Deixe-me ver — do outro lado da linha, Otto podia ouvir o barulho de diversos papéis sendo remexidos. — Não, tá tudo tranquilo, nada que eu não possa deixar com meus subordinados.

— Que bom! Será que pode vir para cá hoje mesmo?

Hoje? Agora? Por que a pressa repentina?

— Meu amigo, faça suas malas, acho que tenho um novo caso para nós.

O Vale dos SussurrosOnde histórias criam vida. Descubra agora