(In Memorian)
"Acorda, menino, passou da hora de se arrumar!"
Mãe Aparecida vociferou, rompendo meu sono de pedra mansa.
Os pássaros não desengaiolaram o canto,
nem mesmo o amanhecer deu as caras.
Tratei de enfiar as roupas novas na mala gasta, colidindo futuro com passado.
Era uma correria que só!
Nas andanças a mãe perguntava: Não esqueceram de nada? Escova de dentes?
Minha ansiedade foi tamanha que entrei no veículo de estômago vazio. Ronronava feito um motor de mobilete.
Dor abdominal e enjoo dominavam-me: Mãe, pegaste sacolas, caso eu vomite?Seis horinhas de estrada e chegaríamos nos arredores
onde vô João Vicente reside há mais de 50 anos,
cidade simplória, ganha-me apenas pelos aroma de novos ares.
Enquanto isso, me contentava por contemplar o dia ganhar forma,
as faixas amarelas neon do asfalto,
o verde gritante das árvores...
pela janela do carro descobrimos novos horizontes.
Foi desolador observar tatus desvividos e estirados pela BR,
marcas de acidentes grafadas nas encostas...
O clarão dos faróis iluminava a neblina à frente,
vez ou outra, uma ave quase se chocava contra o vidro.
Minhas pálpebras pesavam:
a noite mal descansada solicitava espaço."Acorda, menino, acabamos de chegar!"
Abri os olhos e o coração ao ver a casinha de madeira e a varanda polida com cera verde, que sempre sujou meus pés.
O vô encontrava-se sentado na cadeira de fios, com seu semblante sistemático — mas inofensivo.
A fila para tirar os calçados e abraçá-lo foi feita.
Fui o último: Benção, vô. Como vai o senhor? E responde-me com a mesma rouquidão de sempre.Não hesitei em procurar pela vó Maria Heloísa,
Dirigi-me para o quintal dos fundos e atentei no chão as folhas caídas do pé de carambola, gastas pelo riso do outono.
Onde está vovó? Ela nunca deixa de tirá-las. Nem mesmo as cinzas das pitadas noturnas de seu João.
Peguei rastelo, pá e executei o serviço.
Por fim, respirei fundo e caminhei em direção às roseiras.
Onde está vovó? Tornei a perguntar. Mas elas responderam-me somente com cheirinhos tímidos.
Todas as plantas zeladas por vovó pareciam imersas num silêncio mórbido.
Procurei por ela em cada cantinho: Na toalha bordada com seu nome, no piso gelado, nas vasilhas de guardar mantimentos, no pote de doce de leite, no local de orações, na poeira da despensa, no badalar do sino da igreja local, no piado das galinhas, no fogão à lenha, no banco de madeira e, até mesmo nas minhas memórias.
Tinha consciência de que vó Maria não estava ali, mas continuei procurando-a em cada detalhe deixado por ela.
E, pela primeira vez, pedi a benção através do riso e das lágrimas que dubraçaram-se dos meus olhos, refletindo todas as inesquecíveis lembranças.
Vó Maria está descansado em jardins misteriosos, deixou seus fragmentos vividos para os mais atentos. Meu coração os acolheu.
Retornarei para casa carregando-os na mala.