Julia, 69 anos, divorciada, mãe de dois filhos, avó de um menino lindo, foi presa e torturada na ditadura e atualmente mora em uma casa bicho grilo ali perto do bar.
Eu chamo carinhosamente a casa dela assim, porque ao olhar a fachada da casa volto no tempo. Repleta de plantas, cheia de detalhes em seu interior, permeada de vida!
Fim de tarde ela chegava com sua bicicleta vintage, sentava-se e tomava sua cervejinha. Aos poucos nos aproximamos.
Sempre conversávamos muito. Julia é divertida, tem um papo cabeça e é inteligente como poucos.
Gosto muito de ouvir suas histórias sobre sua juventude. Aconteceram há tempos, mas parecem atuais. Julia sempre foi a frente do seu tempo.
Sofreu muito na época da ditadura, não tanto como muitos que perderam seus parentes e amigos, mas foi presa, passou por tortura psicológica e sua família sofreu com isso, talvez mais do que ela.
Sua inteligência sempre permitiu que conversássemos sem problemas, mesmo que possuindo convicções religiosas e políticas distintas.
Um dia, conversando sobre música, descobrimos um gosto parecido e raro: a paixão por Chorinho.
Pronto. Isto bastou para que conversássemos horas a respeito.
Nossas tardes nunca mais foram as mesmas. Julia trazia lindos CDs ou DVDs com Chorinhos inesquecíveis e ficávamos ali conversando e ouvindo aquelas maravilhas.
Os vizinhos do bar reclamavam, queriam ouvir funk ou pagode. Alguns poucos clientes admiravam.
Em uma tarde, juntou-se a nós Garibaldo, um senhor que de tudo já teve na vida, menos o juízo para manter o que um dia teve.
Garibaldo já teve muito dinheiro, família abonada, herdou muitos bens, gastou tudo com farras.
Cerveja paga por um, cigarro pago por outro, Garibaldo seguia vivendo da caridade alheia.
E assim, ao menos duas ou três vezes por semana, finais de tarde, sentávamos à mesa, com batatinhas calabresas, uma boa cerveja e escutávamos boa música.
Sempre existia um debate, uma discussão mais acirrada talvez, pois Garibaldo era bem teimoso e sua palavra sempre tinha que ser a definitiva. Mas depois tudo ficava bem.
Até que certo dia houve uma discussão mais acirrada sobre o mercado de ações, Garibaldo elevou a voz e chegou a emitir umas ofensas contra Julia.
As mesas se separaram e a música silenciou.
Uma pena.
Não houve mais clima para o Chorinho, mas as conversas seguiram.
Julia não aparece mais diariamente, mesmo agora que não mais existe o bar, ela sempre passa pelo meu novo comércio para papearmos um bocado.
E naquele corredor ficou talhada no ar a história dos dias em que, contrariando a tudo e a todos, o improvável acontecia e ouvíamos Chorinho de qualidade no boteco.
Gênero musical popular instrumental brasileiro.
1:-1;G
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Tudo Aconteceu no Bar! Crônicas Cariocas
HumorCantinho das Delícias, um bar simples que virou ponto de encontro especial entre amigos. O bar não existe mais e este livro foi concebido para ser uma coletânea de crônicas divertidas sobre este lugar especial, mas findou por se tornar um registro p...