Desde então, 1 ano se passou e a noção de paternidade de Luís reverteu-se como da água para o vinho. Cuidar de um filho não era uma maldição infligida pelo Diabo, e sim uma bênção oferecida pela mais bondosa das divindades. Anexa ao nascimento de Luís Júnior, uma razão para existir e prosperar surgiu como uma luz no fim do túnel para Luís Pai. A partir dali, sua missão terrena seria fazer com que a breve vida de seu filho fosse vivida da melhor maneira possível. Passou a viver em prol de outro ser, e por isso deixou de se incomodar consigo mesmo. Encontrara no filho uma criatura mais vulnerável do que ele próprio e, mais do que isso, uma criatura que dependia dele em todos os aspectos de sua existência e que sem ele não seria mais do que uma aberração saída de um filme de horror B dos anos 80. Com isso, descobriu que era o detentor de algo que jamais imaginou deter: um dom. Nascera com o dom de ser pai de uma criança com duas cabeças. E ninguém no mundo seria capaz de cumprir tal tarefa tão bem quanto ele.
Luís enfim vislumbrava a felicidade como uma pequena canoa brotando da névoa ao horizonte quando Júnior completou um ano de vida.
Em homenagem àquela importantíssima ocasião, Luís montou uma festa de arrasar quarteirão. Dotado de uma empolgação que jamais sentira antes, convidou todos os seus amigos e todas as pessoas que de fato gostariam de compartilhar aquele grande momento com ele. Ou seja, apenas ele mesmo e o seu filho anormal.
Sua mãe morrera de câncer no útero alguns anos antes e jamais conhecera o próprio pai. Os avós da criança por parte da mãe falecida e todo o restante da família renegavam Júnior e não lhe ofereciam o menor dos afetos. Recusavam-se a admitir que a mais bizarra das criaturas era sangue do seu sangue. Tinha uma relação apenas profissional com o pessoal do hospital municipal e a babá que cuidava do Júnior enquanto ele estava fora não parecia ser uma pessoa das mais agradáveis. Uma semana antes, Luís a flagrara se masturbando no banheiro enquanto sussurrava o nome de um sujeito chamado Jovenal. Decidiu não tocar no assunto e manter as coisas como estavam, afinal, não era fácil encontrar alguém disposto a limpar a cada meia hora os fluídos corporais de uma cabeça morta.
Luís não se incomodou em comemorar a sós com o seu filho. Como todos os momentos que passava com Júnior, foi uma experiência leve e divertida. Passou o dia em meio a soldadinhos de chumbo, carrinhos Hot Wheels e bonecos Max Steel, se divertindo com as brincadeiras infantis tanto quanto a criança.
Até que uma ideia de início empolgante passou pela cabeça de Luís. Seria memorável se o Júnior dissesse sua primeira palavra no seu primeiro aniversário, pensou ele. E assim partiu para um exercício incansável de fazer o filho pronunciar o seu primeiro vocábulo.
- Diz papai. PA-PA-I. PAAA-PAAA-III. Entendeu, filhão? Repente com o papai. PA-PA-I.
E seguiu nesse mesmo ritmo durante uma hora. Luís pronunciava sílaba por sílaba, letra por letra, fonema por fonema inúmeras e incontáveis vezes, mas nada fazia com que Júnior pronunciasse o maldito papai. Cansado e frustrado, Luís tentou uma última vez.
- Vamos lá, moleque. Você é capaz. Eu sei que é. Fala papai. Vai, fala papai. Fala PAPAAAAAAAAAAI.
Ele fechou os olhos ao gritar e não pôde ver o movimento dos lábios do filho, mas pôde ouvir o som que deles saíram.
- Papai. - disse uma voz em gutural tão grave quanto o motor de uma motosserra.
Aturdido, Luís abriu os olhos e se perguntou se estava ouvindo vozes vindas do além. Porra, aquela voz parecia a de um vocalista de uma banda de death metal, e não a de uma criança que ainda usava fraldas e chupava chupeta. Ele olhou para o filho erguido em seus braços e torceu para o moleque permanecer calado. Não queria ouvir aquela voz de novo, ainda mais se com ela viesse a confirmação de que Júnior possuía outra deformidade, dessa vez nas cordas vocais. Mas, pelo visto, a maré de sorte havia acabado. A voz voltou, mas mais perturbadora do que ela própria foi de onde ela veio.
- Papai. - disse a cabeça parasita.
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O Duas-Cabeças
HorrorO filho de Luís nasce com uma rara deformidade e tudo o que parecia estranho torna-se ainda pior quando a criança completa o seu primeiro ano de idade.